Quando a religiosidade é desavergonhada

Dois rapazes caminhavam na calçada na manhã de sábado. Grande movimentação de turistas que vieram para o show da Lady Gaga em Copacabana. Do meu ponto de observação, correndo na rua, não consegui saber se os rapazes eram locais ou turistas. Na verdade, prestei mais atenção nas reações das pessoas que passavam por eles.
Uma senhora balançou a cabeça como gesto de reprovação. O garoto na bicicleta elétrica deu uma risada estridente ridicularizando a cena. O moço de andar apressado encontrou tempo para olhar para trás depois de ter passado por eles. Enquanto o vendedor ambulante disse gracejos desrespeitosos como se estivesse autorizado pelas circunstâncias.
Os dois rapazes que despertaram tais reações hostis estavam caminhando no sábado ensolarado no centro histórico da cidade do Rio de Janeiro. Os namorados caminhavam de mãos dadas.
Poucos metros adiante, na sequência da calçada, havia um grupo que costumeiramente caracterizamos como “pessoas em situação de rua”. Manhã clara, chão duro, temperatura que justificava o lençol por cima e o papelão por baixo. Dezenas de pessoas abrigadas debaixo de uma marquise no centro histórico da cidade maravilhosa no dia do show da Lady Gaga (03/05).
A senhora de pescoço enrijecido apertou os passos. O ciclista que não pedala fechou a cara. O moço apressado, desta vez, não olhou para trás nem para os lados. O vendedor ambulante atravessou a rua para evitar a calçada dos mendigos.
Enquanto a cena do casal de namorados é censurada como imoral, a cena dos miseráveis agrupados é tolerada como natural.
Quando a santidade não se importa com a justiça, ela se transforma numa religiosidade desavergonhada.
A Parábola do Bom Samaritano expõe o quanto a prática religiosa desumanizou tanto o sacerdote quanto o levita. Jesus denuncia que desavergonhadamente deixaram o ferido no chão da rua e correram para as suas obrigações religiosas no templo com a forte crença que o rito não pode esperar e perde sua magia quando fora de hora.
Podemos pular o humano caído como se fosse um obstáculo para a nossa carreira. Abandonamos, nos esquivamos do estranho com o interesse de cumprir obrigações no culto.
A pressa para mirar no espiritual não nos permite notar as coisas miúdas do cotidiano.
Ficar indiferente às dores do mundo é flertar com a imoralidade.
Evidente que na minha corrida não abordei as pessoas e perguntei pelos seus credos e pertenças religiosas. Relacionei as reações aos cristãos porque reconheço nos espaços por onde transito e me relaciono que os quatro personagens da calçada, sensores da moral sexual e permissivos da moral social/econômica, me parecem bem familiares.
Na semana do Conclave da Igreja Católica, convém lembrar a fala poética e profética do inesquecível Bispo do Araguaia, Pedro Casaldáliga: “No ventre de Maria Deus se fez homem. Na oficina de José, Deus se fez classe.”.
O Evangelho de Jesus nos torna mais sensíveis às dores do mundo. Caso contrário, os observadores chegariam à conclusão de que moralmente o cristianismo é sem vergonha, desavergonhado, só quando a questão é a miséria a céu aberto.
Quanto ao casal, que sejam felizes com a bênção de Deus e o sorriso amigo do estranho que passa correndo lentamente na rua.