Mãe e finitude

O “combinado” é o filho morrer depois dos pais. Quando acontece o contrário, parece algo antinatural.

Os soldados que crucificaram Jesus disputaram o que ele tinha de valor. As suas vestes foram rasgadas em quatro partes. A túnica, porém, não era prudente rasgar. Sem costura, tecida de alto a baixo. Lançaram sorte para definir quem ficaria com a túnica. Lançaram dados para testar a sorte.

Quanto a Maria, quem se interessaria em ficar com ela? Que valor ela tinha?

Jesus estava morrendo na cruz, agonizando, e o seu gesto foi pedir ao amigo que amava que tomasse Maria como mãe. Teve forças em meio à dor para pedir à mãe que tomasse João como filho.

Jesus não estava acionando a lógica da compensação ou substituição, apenas um gesto final de cuidado.

A quem você confiaria os cuidados da sua mãe caso soubesse que estava morrendo e não poderia contar com o seu pai e irmãos? Na sua falta, quem poderia ocupar o seu lugar de filho ou filha?

Mesmo as pessoas que já não têm mais a mãe viva, façam o exercício, simulem: a quem você confiaria o cuidado da sua mãe caso soubesse que morreria primeiro?

Depois desse diálogo difícil, Jesus pronunciou só mais dois breves gemidos antes de morrer: “Tenho sede” e “Está consumado”.

Portanto, em vida, o último pedido de Jesus foi: “Cuide da minha mãe!”

Finitude

Retomo a um caso que contei aqui na coluna em 2023.

Voltávamos de um delicioso jantar em que comemoramos o aniversário do meu filho João Luca. Doze anos passaram depressa. Estávamos no carro. Enquanto eu dirigia, pensava: “As pessoas mais importantes da minha vida estão aqui agora: Patrícia, mãe e meus dois filhos.”

Animados fazíamos uma rodada de piadas. Nada de novo, mas tudo era motivo para risos. Num brevíssimo intervalo, o silêncio se impôs, no que logo foi vencido pelo mais falante entre nós, o Pedro:

– Pai, quando eu fizer 60, quantos anos você vai ter?

– 100 anos.

– E a mamãe?

– Ela, 97.

– E a vovó Raimunda?

– Deixa eu ver… 130 anos.

– E o Luca?

– 67.

O silêncio, dessa vez, ganhou mais tempo. Percebi que não se tratava de curiosidade matemática, a questão era existencial. Pedro, novamente, interrompeu aquele silêncio fundo:

– Pai, vocês não vão estar aqui quando eu fizer o meu aniversário de 60 anos? Só o Luca, talvez?

Desconcertado, concordei com ele. Pela terceira vez o silêncio. Dessa vez parecia que ninguém poderia vencê-lo. Dizer o quê.

Pelo espelho retrovisor, olhei para o banco de trás. Minha mãe chorava olhando pela janela. Luca chorava olhando para a outra banda. Pedro chorava olhando fixo para nada. Patrícia chorava quase que escondida no banco da frente ao meu lado.

Por um instante ensaiei uma frase de efeito. Mas fui vencido. Entreguei-me ao choro em plena comunhão com as pessoas que mais amo. Por ser o último a chorar, parece que abafei por mais tempo. Quando veio, eu não soube ser discreto.

Pedro trouxe essa questão em pleno dia do aniversário do irmão, claro, não porque quisesse roubar a cena. Mas era tudo tão pleno, estávamos tão felizes, tão juntos, amando tanto, que na sensibilidade dele aos 5 anos de idade intuiu:

– Meu Deus, um dia isso vai acabar! Gostaria que durasse para sempre!

Estar aqui e não sonegar o amor. É o que temos para hoje. A alternativa é economizar, por puro medo das ausências de amanhã.

Lugar melhor não há do que o colo de mãe, peito farto de vida, cheiro de saudade.

O último pedido de Jesus direcionado ao seu amigo João não foi salve o mundo ou construa igrejas. Meigamente o mestre suspirou: “Cuide da minha mãe!”

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
0 Comentários
Recentes
Antigos Mais votados
Inline Feedbacks
View all comments