O ritmo da produção de manufatura é diferente do modo de produção industrial. Feitura doméstica em que o fotógrafo não é engolido pela máquina. Tão importante quanto mirar o ângulo e dar sequência aos movimentos mecânicos é andar distraído para conseguir sentir o espírito do lugar e das pessoas.
O biógrafo presta atenção em Cartier-Bresson, muito mais do que no catálogo que o fotógrafo e fotojornalista francês produziu ao longo do século XX. Pierre Assouline retrata Cartier-Bresson como testemunha do século XX, inseparável da sua Leica. [1]
Ao ler a biografia de Cartier-Bresson saltaram aos olhos alguns termos que colocam a fotografia enquanto arte artesanal: contar a história de um olhar; crônica do cotidiano; testemunha da história do presente; imagens furtivas; fotógrafo do instante decisivo; o repórter se faz arqueiro.
O olhar artesanal do fotógrafo, tendo esses termos em tela, é poético.
A técnica apurada pode ajudar na captura de imagens, mas só a sensibilidade para conseguir estar bem-posicionado no deslumbre do momento decisivo.
As fotografias na dimensão dessa filosofia poética são interpretações de fatos. A habilidade de contar uma história, não apenas narrativa, através de uma sequência de fotos. Enquanto cronista do cotidiano, Cartier-Bresson figura como intérprete do século XX, bem-situado no tempo e espaço.
Mistério sempre há de pintar por aí, como disse o Gil.
Na biografia em questão não aparece o termo espiritualidade. Mas, por minha conta, permitam-me algumas notas inspiradas neste personagem que fez do olhar artesanal, poesia.
A espiritualidade do tempo presente não fica contida nos textos sagrados nem limitada as tradições. Simplesmente flui sem pedir autorização ou carimbo de autenticidade.
Acontece no instante não como culto oficial, mas como expressão prosaica. Mística enquanto experiência cotidiana.
A mística do instante não é reduzida a interioridade. Ela é corpórea. Fotografável. Aparente. Suscita contato e toques.
A ideia de que o espiritual é essencialmente invisível não inibe os feitores da arte artesanal, seja a fotografia ou qualquer outra manifestação humana que se pretenda expressão de um olhar.
A espiritualidade sem corpo é desalmada.
Quem precisa prestar atenção ao passado remoto para ter uma experiência com Deus, provavelmente, tornou o ritual religioso em objeto de veneração. Reduzem a religião a tradição e fazem dos ritos remontagem das cenas vividas pelos antepassados. Os tais ficam distraídos ao cotidiano como se fosse impensável Deus se revelar no modo artesanal.
A espiritualidade é um veio que nasce a partir das nossas experiências triviais.
Imortalizado pelo conjunto da obra, Cartier-Bresson foi aclamado como “o olhar do século XX” a partir do conceito “o instante decisivo” por estar no local certo na hora certa para capturar as imagens.
Mahatma Gandhi
O fotógrafo francês foi recebido por Gandhi na Índia no dia 30 de janeiro de 1948. Conseguiu o retrato que tanto queria. Antes de partir, mostrou a Gandhi o catálogo da sua exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York intitulado “Póstuma”.
Gandhi ficou interessado principalmente na foto em que o poeta Paul Claudel caminhava por uma aldeia próxima do seu castelo e se deparou com um carro fúnebre vazio, paramentado, puxado por cavalos. O poeta olhou para trás e o fotógrafo fez o registro do “instante decisivo”.

Apontando para essa foto, Gandhi murmurou:
– A morte, a morte, a morte…
Cartier-Bresson subiu na sua bicicleta e partiu satisfeito. Ao chegar ao local onde estava hospedado percebeu uma agitação estranha. Gritos e correrias. Choros e berros:
– Mataram Gandhi!
Uma hora antes estavam juntos.
Retornou o mais rápido que pôde na sua bicicleta e constatou que Gandhi fora assassinado.
Sorte por estar no local certo na hora certa?
Presumo que para além da figura ou da paisagem a serem fotografados há um fluxo espiritual a ser notado. Com isso não estou introduzindo a religião na cena. Apenas chamando a atenção da sensibilidade que vem da espiritualidade.
Cartier-Bresson não era dado aos ritos e ritmos religiosos. No entanto, profundamente sensível para revelar a profundidade humana.
O fotógrafo do instante decisivo era distraído o bastante para sentir o fluir do espírito.
A nascente que dá origem ao veio que estou chamando de espiritualidade, somos nós e as nossas circunstâncias.
[1] Assouline, Pierre. Cartier-Bresson: o olhar do século. Porto Alegre-RS: L&PM, 2009