A oração sem resposta: igrejas evangélicas nas favelas cariocas

Manhã de domingo chuvoso. Moravam no alto do morro. A ladeira era devidamente asfaltada. Não havia perigo de o carro ficar atolado na lama. Um Fusca 1979 verde que chamava atenção por onde passava. Todo bonitinho, equipado com capricho.
A família dentro do carro. O filho mais velho (11 anos), a filha (9 anos) e o filho mais novo (8 anos). Para a esposa não havia tempo ruim para ir à igreja. Ela levantava cedo e quando as crianças acordavam, estava tudo preparado. As roupas que iam vestir, devidamente penduradas nas cadeiras da mesa da sala. O café da manhã, carinhosamente preparado sobre a mesa.
Não era preciso atravessar a Avenida Brasil, a igreja ficava em Vigário Geral mesmo. No entanto, não dispensavam a breve viagem no carrinho. Durante a semana o Fusca ficava encostado, a mobilidade urbana da família se dava pelo trem, um dos ramais da Central do Brasil, ou através dos ônibus, fartamente disponíveis na Avenida Brasil.
A frequência ao culto diminuía nos domingos chuvosos. Poucas famílias tinham carro. Alguns moravam em pontos do morro mais complicados, ruas esburacadas com muita lama. Prudentemente, esperavam a chuva diminuir para quem sabe conseguirem ir ao culto à noite.
Antes do culto no templo a família se dividia na igreja. Enquanto os filhos iam para a sala das crianças, os pais ficavam na sala da casa feita de templo. A escola bíblica dominical. O conteúdo é o estudo bíblico, os fortes vínculos afetivos atraem e congregam, a tal da sociabilidade que marca as igrejas evangélicas.
Em seguida houve o culto. Todas as classes da escola bíblica reunidas no templo, exceto as crianças que continuaram na escolinha na sala anexa. Naquela manhã havia umas 10 pessoas no templo e 5 crianças no espaço delas. Geralmente a frequência dominical chegava a 20 pessoas, mas a chuva impediu alguns neste domingo.
No retorno para casa, por volta do meio-dia, Venino parou na padaria para comprar um frango assado. Na véspera, a esposa preparou o macarrão. Era só esquentar, preparar rapidinho a salada de alface e tomate, e pronto, o almoço estaria a mesa. Como sempre faziam, o carro ficava estacionado em frente à casa deles e à noite retornariam à igreja.
Depois do almoço, como estava friozinho, pegaram travesseiros e cobertas e levaram para a sala. Só havia televisão na sala. Ficaram entocados pulando de uma emissora para a outra à procura de uma programação adequada. As crianças foram adormecendo. Com o silêncio, bateu o cansaço acumulado da semana e o Venino apagou.
Só acordou em torno das 17h com o barulho das crianças que renovaram a bateria e estavam no agito. Havia tempo para um café, banho e se arrumar. Precisavam estar na igreja às 18h.
Quando abriu a porta, com dois passos alcançou o portão da rua. Ia na frente para abrir as portas para a família. Na calçada, a constatação: “levaram o nosso carro!”
De fato, naquele domingo se atrasaria, mas não deixaria de ir à igreja. A família entrou em casa com recomendações para não abrir a porta para ninguém. O Venino, ainda com a Bíblia na mão, foi descendo a ladeira sob o olhar e silêncio de alguns vizinhos. A lei do silêncio. Ninguém viu.
Atordoado, cogitou que poderia ser algum garoto que pegou o carro provisoriamente para participar do famoso “racha” em Vigário Geral. Como essas corridas de rua ilegais não ocorriam em horário marcado, resolveu ir para a igreja e pegar a parte final do culto.
Na porta da igreja, no final do culto, os irmãos perguntaram pela família, supondo que o tempo fechado motivou que a esposa preferisse ficar com as crianças em casa. Venino falou para um grupinho e rapidamente todos estavam ao redor dele: “Acho que roubaram o meu carro, irmãos!”
O pastor tentou acalmar o pessoal e sugeriu que o Venino esperasse o dia seguinte para com a cabeça fria terem condições de juntos procurar o carro. Uma irmã puxou uma oração na calçada clamando pela justiça divina. Enquanto uns cochichavam que “já era”, outros expressavam palavras de ordem reivindicando a fé no Deus dos impossíveis.
Ninguém sugeriu que o irmão procurasse a polícia para fazer um boletim de ocorrência. Em momento algum essa hipótese foi ventilada.
Acataram o conselho do pastor e foram dispersando na paz de Cristo. A irmãzinha de oração que acabara de fazer um fervoroso pedido a Deus era vizinha do Venino. Foram juntos na mesma direção. No caminho, tiveram o seguinte diálogo:
– Irmão, o meu sobrinho é o dono do morro.
– Eu sei, conheço ele desde garoto.
– Então, vamos lá falar com ele.
– Mas irmã…
– Venino, se formos falar com ele agora, acho que amanhã, quando você acordar, o seu carro vai estar na frente da sua casa. Duvido que ele saiba disso, duvido muito. Não permitiria, não contigo!
– Irmã, eu não vou. Sabe por quê? Não quero ficar devendo favor.
– Nada a ver, irmão! O carro é seu. Isso não pode acontecer assim. Vai ficar devendo coisa nenhuma. É a ética do lugar!
– E o meu testemunho? Como vou andar com a Bíblia na mão na rua depois disso? Os meus filhos, irmã, preciso ensinar o certo para eles. Deus sabe onde eu moro. Já falamos com Deus. Agora é esperar!
Chegando em casa, comeu a sobra do macarrão do almoço. Cultivava a esperança de acordar e dá de cara com o seu fusquinha.
Não aconteceu, nem no dia seguinte, nem nunca mais.
Nos cultos que se sucederam, a igreja continuou orando pelo milagre. O pastor chegou a andar com ele até Parada de Lucas perguntando discretamente se sabiam de um fusquinha 1979 verde.
Para bons entendedores dos territórios dominados na cidade do Rio de Janeiro, sabe-se que não é qualquer um que atravessa impunimente a fronteira entre Vigário Geral e Parada de Lucas.
Tendo a Bíblia como salvo-conduto, ambos vestidos com paletó e gravata, saudando a todos com a paz de Cristo, esperavam encontrar e resgatar o carro.
O fusquinha jamais foi achado.
Não recorreu ao poder do Estado, muito menos ao poder paralelo. Resolveu sofrer o dano, uma vez que suas orações não foram respondidas como gostaria.