Autismo: o irmão na sala de espera

Os irmãos de pessoas com autismo podem ser obrigados a desenvolver precocemente a paciência, como se já devessem nascer sabendo que as suas vantagens vêm de berço. Para alguns, os eventuais desequilíbrios de cuidados dos pais em relação ao irmão, com Transtorno do Espectro Autista (TEA), não deveriam gerar ciúmes, mas paciência. A carência desses irmãos, quando reclamada, pode ser recriminada como se fosse egoísmo diante dos fatos. Uma trama com forte potencial para se transformar em um ciclo de culpas.

Adoraria ter a compreensão exata desta teia a qual a família que lida diretamente com o autismo vivencia. Caso tivesse tamanha clareza, poderia ensaiar alguns conselhos, ou quem sabe, compartilhar fórmulas milagrosas. Contudo, definitivamente, não entendo plenamente, apenas sinto muito, na pele e na alma. Aqui em casa, buscamos modestamente a justa forma apenas para hoje. Amanhã, se tudo der certo, nossos erros serão outros, não os mesmos.

Durante muito tempo, dadas as necessidades especiais do Luca, carregávamos o Pedro porque não tínhamos com quem deixá-lo. Enquanto o Luca era atendido, ficávamos com o Pedro na sala de espera. Idas e vindas com o Luca aos médicos, Pedro na sala de espera. Acompanhamento regular do Luca com a psicóloga, Pedro na sala de espera. As sessões de psicopedagogia eram integradas à rotina do Luca, o Pedro esperava na sala contígua como se estivesse catando entretenimento por conta própria. Natação do Luca, mesmo não gostando muito, Pedro fazia também. Até porque, neste caso, não havia sala de espera. Ainda pequenos, quando íamos ao shopping, o espaço preferido e seguro para o Luca era a livraria. Pegava uma pilha de livros e ria de se mijar. O Pedro não reclamava pelo tempão que ficávamos ali, mas, sabia que era pelo irmão.

Claro que na rotina estafante da família que lida com o TEA as nossas percepções são afetadas. Por isso é tão importante compartilharmos as nossas experiências, não como fórmulas ou receitas, mas como partilha que gera reflexão para tomada de decisão. O ponto central e consensual é que temos que demonstrar aos nossos filhos que não estão no espectro que os amamos. Mas como demonstrar isso com gestos concretos?

No nosso caso específico, a primeira ação foi tirá-lo da sala de espera. Futebol sempre foi a paixão do Pedro. Demandava tempo levá-lo aos treinos e aos jogos nos finais de semana. Na arquibancada até hoje, exerço o meu tempo na “sala de espera”. Ele no centro do campo. O melhor é quando voltamos para casa comentando os lances e cornetando geral. Foi um modo prático de dizer para ele que nos importamos e respeitamos o seu modo de ser. Levamos a sério as suas paixões.

Caso o Luca não gostasse de contato físico pela sua condição no TEA, então, estaria lascado. O Pedro o beija, empurra, abraça, esbarra, simula luta, enfim, o aperta de todos os modos. Sim, o Luca eventualmente reage empurrando, gritando, reclamando, mas, não adianta. Nesse caso, ou aceita o toque afetuoso, ou então, se morde. Quando muito irritado, contrariado ou ansioso, o Luca costumava morder a própria mão. Eu e Patrícia já nos aborrecemos bastante com essa situação, mas não mais. Resolvemos que assim como não controlamos as estereotipias, também não dominamos os afetos que são táteis. Eles que se entendam.

Nesse artigo, não quero estereotipar o TEA, assim como não pretendo sugerir padrões a partir da minha experiência. São apenas as minhas percepções que surgem da minha vivência com pessoas concretas. Seria contraditório falar de neurodiversidade sem considerar as diferenças sociais, econômicas, raciais, de gênero, etária, regional e pessoal. Existem múltiplas formas de se perceber e viver o autismo. Nessa aventura, ora divertida, ora dramática, o desafio é não sonegar o amor a quem quer que seja.

Na série de artigos sobre o autismo publicado nesta coluna, resolvi escrever de forma bem pessoal para proporcionar, principalmente aos outros pais, encorajamentos frente ao perigo do isolamento. Quando admitimos nossas vulnerabilidades, estamos no processo para nos humanizar. Coloquei no centro das atenções a minha relação com o Luca a partir da minha perspectiva, é claro. Conquanto estivesse ciente das minhas motivações, ocorreu-me o seguinte pensamento: e quando o Pedro ler, como vai se sentir?

Daí, parei o que estava fazendo e o chamei. Fechei a porta do meu cantinho de trabalho em casa. Coloquei a minha cadeira frontal a que ele estava sentado.

– Você leu os meus artigos sobre autismo?

– Sim!

– O que achou?

– Lindo, pai!

– Eu preciso te dizer uma coisa…

– O que foi?

– Estou falando do seu irmão neste “Abril Azul” por questões óbvias.

– Eu sei.

– Mas quero que saiba que eu te amo tanto quanto. Você não está no centro nos artigos, mas jamais esteve em segundo plano nas nossas vidas.

– Eu sei, pai.

– Eu tenho orgulho de ser seu pai. Você é uma pessoa incrível. Aqui em casa você transborda alegria e carinho. Você nos une. Eu preciso dizer olhando nos seus olhos que eu te amo muito, meu filho!

Pedro ficou por um tempinho desnorteado. Com os olhos marejados, se levantou e veio em minha direção. Não disse mais nada, apenas me abraçou demoradamente. Sempre foi a melhor forma dele falar, usando todos os sentidos, mas principalmente, o tato. Para ele, afeto se afere com os toques, abraços e beijos.

Horas após, saímos juntos, só nós dois. Fomos andando para o Maracanã. Primeiro jogo da final do Cariocão. Mergulhados na Nação Rubro Negra, vibramos por mais um título do nosso Mengão. Bem à nossa frente uma família chilena tietando o Erick Pulgar. Durante o intervalo, o pai levou o filho, aparentando uns 8 anos, para comprar o clássico Cachorro-quente da Geneal. Era a deixa que o Pedro queria.

– Pai, percebeu no menino que está à nossa frente?

– Chileno, né?

– Ele é autista.

– Como você sabe?

– Ele está com protetor auricular, sentou-se no chão e se escorou na mureta de costas para o campo. Além disso, ficou jogando Minecraft no celular e está com o cordão de girassóis por dentro da camisa.

O pai retornou para o segundo tempo e todo o comportamento do menino descrito pelo Pedro se repetiu. Não era o olhar crítico, mas empático. Pedro joga um bolão no meio de campo. Uma das suas maiores virtudes é a visão de jogo. O olhar periférico que enxerga no ponto futuro e enfia a bola deixando os atacantes na cora do gol. Meu Pedico é campeão, solidário no campo, assim como na vida.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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