Democracia: Como Atualizar, Desliga E Reinicia?

Vivemos atualmente no Brasil um refluxo democrático?

Os registros históricos referentes à segunda metade do século XX revelam que a democracia passou a vigorar em muitos Estados. Os modelos políticos opostos sofreram abalos estruturais e ruíram em boa parte do mundo. Mandos tais como das monarquias, aristocracias e oligarquias deram lugar ao sistema de governo democrático. A discussão pode se alongar se quisermos estudar até que ponto um sistema foi substituído por outro ou se houve superposições de sistemas políticos. É bastante plausível a admissão que coexistiram modelos democráticos com outros modelos em determinadas circunstâncias. Interessado em definir democracia, Robert Dahl adverte que existem amplos sentidos: “democracia tem significados diferentes para povos diferentes em diferentes tempos e diferentes lugares”.[1]

Conceber a “evolução” da democracia pode não responder a contento o que o fenômeno vem a ser de fato. Dahl não concebe um processo evolutivo, linear, em que os fatos históricos foram se somando até chegar ao estágio mais avançado. Não houve um fiat democrático e daí seguidos e constantes aperfeiçoamentos. Dahl defende que “como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ter sido inventada mais de uma vez, em mais de um lugar”.[2]

No entanto, não se despreza a experiência democrática vivida em Atenas (demos – o povo; krato – governar) e a experiência Republicana em Roma (res – coisa ou negócios; publicus – publico) no quinto século a. C. São importantes marcos. Essas experiências vicejaram, murcharam e morreram. Mil anos depois novos governos democráticos ressurgiram no norte da Itália. Tais repúblicas italianas foram palco do movimento histórico que ficou conhecido como Renascimento. Ainda que o termo Renascimento não se restrinja à política, por certo a contempla.

Aproximadamente mil anos após as democracias em Atenas e Roma, há registros definidos como elementos democráticos também na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em outros contextos ao norte do Mediterrâneo. No entanto, o exemplo mais apreciado refere-se ao Parlamento da Inglaterra medieval: o equilíbrio dos poderes da Casa dos Lordes e da Casa dos Comuns, a separação dos poderes que assegurava um sistema balanceado, representativo, que veio a ser tão apreciado quanto imitado. De fato, em pleno século XVII temos um exemplo bem marcante do que deveria ser um governo popular.

A partir dos exemplos históricos citados poderíamos concluir que a democracia renasceu e não mais recrudesceu. Isso porque do século XVII aos nossos dias constatamos o aumento significativo de Estados que passaram a ser regidos conforme o receituário democrático. Tal conclusão é perigosa e consiste num ledo engano.

Dahl não se contradiz ao dizer que a “democratização estava a caminho, apenas a caminho…”.[3] Se ele acentua os traços democráticos em sociedades específicas, em tempos específicos, ele não se furta ao trabalho de demostrar, mesmo nesses exemplos históricos consagrados, as lacunas, as tarefas por realizar, a falta de elementos essenciais para a vigência plena da democracia. Em outros termos, ele mostra os traços democráticos em Atenas, Roma e Europa do norte, para depois mostrar os déficits democráticos desses exemplos citados.

Em suma, não é recomendável na tentativa de definir democracia, fazermos um tipo de inventário das experiências democráticas ao redor do mundo. Isso não nos levará à conclusão que o que hoje observamos em termos de democracias é o que há de mais avançado. Essa linha de pensamento é enganosa. Seria ilusório admitir que existem duas pontas do modelo democrático e que é fácil definir a partida e a chegada. Se fosse assim, bastaria uma ilustração de uma reta cronológica para demonstrar que o que temos é momentaneamente a versão mais atualizada. O que destaca Dahl é que “a democratização não seguiu a trilha ascendente até aqui”.[4]

Existiram avanços e retrocessos, altos e baixos, ganhos e perdas, idas e vindas, revoluções e resistências, ascensão e queda. Os dados que dispomos não permitem concluir que a democracia está consolidada e tende a se aperfeiçoar.

 

DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

[1] Dahl, Robert A. Sobre a democracia, p. 13.

[2] Ibid., p. 19.

[3] Ibid., p. 32.

[4] Ibid., p. 35.

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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