Democracia e as Ondas Reacionárias
A democracia, além de festejada, é também aclamada como modelo político de governo ideal. Existem descontinuidades entre o discurso e a prática democrática? O grande interesse de Albert Hirschman consiste em analisar a retórica reacionária e caracterizar os oponentes das conquistas da cidadania. Dialoga com a clássica contribuição de T. H. Marshall[1]que aponta para a Democracia em Progressão.
Hirschman foca as reações aos direitos civis no século XVIII, mais detidamente o debate em torno da Revolução Francesa. Em seguida o destaque é dado às reações aos direitos políticos no século XIX, sobretudo as críticas ao Sufrágio Universal. Por fim, o foco sobre a reação à cidadania social no século XX, com destaque especial para o discurso reacionário sobre o Welfare State.
O conteúdo do livro contempla três teses Reativo-Reacionárias. O que Marshall chamou de investidas progressistas serve de referência. Admite a existência de fissuras nas construções do modelo democrático em diversos contextos. Hirschman não vê apenas os avanços na consolidação da democracia, sublinha os retrocessos, lacunas, fissuras e desvios.
A primeira tese Reativo-Reacionária é a da Perversidade. Embora não discursa abertamente contra as teses consideradas progressistas, porque não querem ser tidos como reacionários, os proponentes da Tese da Perversidade assumem um tom de cautela e presteza frente à tentativa de avanços da cidadania. Diríamos que esta tese procura sempre adiar os avanços, conter o ímpeto dos “revolucionários”, imobilizar os partidários das mudanças com prognósticos sombrios. Assim é definido: “A tentativa de empurrar a sociedade em determinada direção fará com que ela, sim, se mova, mas na direção contrária”.[2]
A segunda tese Reativo-Reacionária é a da Futilidade. Os que dela fazem uso observam os esforços dos “agentes de mudanças” para que a sociedade seja alterada em direção à cidadania. Dizem que as mudanças propostas são de natureza cosméticas, elementares, de fachada. A incessante busca por mudanças sociais antes de afirmar a “Lei do Movimento, afirma a Lei do Não-Movimento”. O que for retirado do lugar circulará, dará voltas e por fim, retornará a sua origem. Numa citação a Lewis Carrol – Alice no País das Maravilhas – Hirschman expressa o conteúdo básico da Tese da Futilidade: “Aqui é preciso correr o máximo que se pode para ficar no mesmo lugar”.[3]
A Tese da Futilidade afirma que as estruturas sociais são inflexíveis e que ações humanas para as alterar levarão a frustrações. Reivindica a autoridade científica para desencorajar os que achavam possível alterar as leis sólidas e inflexíveis que governam o universo. Hirschman define a Tese da Futilidade da seguinte forma: “As tentativas de transformação social serão infrutíferas, que simplesmente não conseguirão deixar uma marca”.[4]
E por fim, a Tese da Ameaça. As propostas de mudança devem considerar os riscos de pôr a perder conquistas anteriores. As mudanças anunciam mais custos do que benefícios. Os passos à frente podem de fato representar grandes retrocessos. Importa conservar o que se tem de ganho social, do que propriamente focar nas mudanças e elas acarretarem perdas. Se funciona a ameaça, o presente é marcado pelo imobilismo.
Na apresentação da terceira tese, Hirschman mostra o seu desconforto com o esquema montado por Marshall na discussão da cidadania. A crítica de Hirschman a Marshall consiste no fato de ele ter ignorado as Ondas Reacionárias que por certo comprometeram as concepções e conquistas de cidadania. Neste sentido, Marshall erra pelo simplismo de conceber uma história de caráter somatório, de olhar ingenuamente para o progresso da cidadania ao longo dos séculos, como a vencer etapa por etapa até chegar a um bom termo. Realmente, Hirschman desconfia do otimismo de Marshall.
HIRSCHMAN, Albert O. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
[1] Marshall, T. H. Cidadania, classe social e status.
[2] Hirschman, Albert O. A retórica da intransigência, p. 17-18.
[3] Ibid., p. 44.
[4] Ibid., p. 15.