Elogio da serenidade em Bobbio
Elogio da serenidade e outros escritos morais
BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
As virtudes do estadista estão mais para a bravura da conquista do que para a serenidade do sábio. Presume-se que nas sociedades organizadas para a produção e o consumo há forte propensão para a hierarquização das virtudes. Enquanto a temperança é tida por “virtude fraca”, a ambição é posta na categoria de “virtude forte”.
Dito doutro modo: “E para falar a verdade – a esta altura da vida, pouco além do meio da estrada – estou mais interessado em encontrar velhos em paz do que jovens em fúria.”[1] Nessa frase, longe do ambiente da filosofia do direito e da filosofia política trabalhada por Bobbio, Caio Fernando Abreu dá margem ao seu desejo. Embora estejamos diante de uma citação que remete ao plano estritamente pessoal, ela nos ajuda a aguçar o embate entre virtudes fortes x virtudes fracas.
Isso para dizer, segundo a filosofia moral de Bobbio, existem virtudes que além de impopulares são impolíticas. A serenidade é algo aparentemente mais presente na fase senil do que na fase juvenil. Pois é exatamente neste aspecto que o autor se aproxima do tema sabendo que a serenidade é tratada genericamente como “virtude fraca”.
A serenidade como “virtude fraca” pode ser equivocadamente confundida com passividade e até mesmo como negação da ação política. Ora, Gandhi figura como exemplo de serenidade aplicada à vida pública de um modo contundente. Neste caso exemplar, a serenidade é refletida como virtude política.
A concepção de política desenvolvida por Maquiavel distingue virtudes cristãs impolíticas de virtù dos clássicos gregos com as quais almejava aconselhar os estadistas. Fica explícito que Bobbio tinha essa concepção ao distinguir as virtudes entre fracas e fortes.
Giuliano Pontara pondera. Tendo como referência a ação de Gandhi, Pontara coloca a serenidade como virtude política, sabidamente pacífica, o que não é o mesmo que passiva. Haveria, segundo o interlocutor, a necessária inflexão de Bobbio para relativizar o binarismo maquiaveliano.
Tratando-se do pensamento de Bobbio, o fato de hierarquizar as virtudes entre “fortes e fracas” não é o mesmo que descrever as virtudes dos “fortes e fracos”. A “virtude fraca” não é a “virtude dos fracos”. A possível confusão semântica ocorre por conta da confusão entre ética pessoal e ética política. Dessa forma, no contexto político há uma nítida diferenciação das virtudes e essas categorias valorativas extravasam no convívio e percepções sociais.
Elogio da serenidade
Parece-nos bem provável caracterizar a geração técnico-científica enquanto vanguarda sempre ávida por novas possibilidades. O elogio aos memoriais que falam do passado tem a sua importância, mas nada que se aproxime ao elogio àqueles que são capazes de gestarem novos projetos. A era da intensificação da velocidade na culminância da superação do tempo e espaço fabrica não apenas produtos para o comércio, mas também valores para o consumo pessoal e para orientação da vida social. Os valores são “fabricados” numa velocidade espantosa.
Os cursos de ética geralmente partem dos tratados sobre as virtudes de Aristóteles e Kant. Comparar Ética a Nicômacos com Metafísica dos costumes é certamente um caminho promissor para situar a ética. Notadamente, postulações kantianas que distinguem dever interno do dever externo.
Na sua revisão da literatura pertinente ao estudo da ética, Bobbio afasta-se da tendência predominante de contraposição entre virtudes e regras como se o acento estivesse numa vertente ou noutra. “Em vez de contrapor virtudes e regras, seria bem mais sábio analisar a relação entre elas.” (BOBBIO, 2002, p. 33).
Definição de serenidade. Nem individualismo introspectivo, muito menos passividade. “Serenidade é a única suprema potência que consiste em deixar o outro ser aquilo que é.” (BOBBIO, 2002, p. 35). Além da beleza plástica, essa definição de Carlo Mazzantini posiciona a serenidade no que ela tem de social e potência ativa. Por certo, essas noções não são óbvias no uso corriqueiro do conceito.
Coloquemos num quadro a distinção elaborada por Bobbio, ressalvando que não há por parte dele nenhum esquematismo positivista nem a comparação entre o melhor e pior ou positiva e negativa. O autor traça uma comparação qualitativa, analítica.
Virtudes fortes | Virtudes fracas |
Coragem | Humildade |
Firmeza | Modéstia |
Bravura | Moderação |
Ousadia | Recato |
Audácia | Castidade |
Generosidade | Ingenuidade |
Liberalidade | Simplicidade |
Clemência | Doçura |
Acima de tudo, a serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência. (BOBBIO, 2002, p. 39).
Com maior razão, a serenidade é contrária à insolência, que é a arrogância ostentada. O indivíduo sereno não ostenta nada, nem sequer a própria serenidade. (BOBBIO, 2002, p. 39).
Embora Bobbio não estivesse tratando sobre os ambientes das redes sociais da Internet, suas assertivas ajudam-nos a clarear o tema em tela.
Vivemos numa era digital de superexposição em que predomina o show do Eu.[2] A vida vivida como narrativa. Diário com chave é para os fracos. Os diários são escancarados para o grande público em tempo real. Notas no blog, fotos no Instagram, vídeos no canal do YouTube, opiniões no Twitter e um pouco de quase tudo no Facebook.
O EU é a grande estrela de uma vida editada para ser assistida.
A vida privada tem paredes de vidros sem cortina. Tudo é do interesse do público, principalmente a vida privada.
Paula Sibilia foi muito feliz no título do seu livro: O show do Eu: a intimidade como espetáculo.
O trabalho empírico de Paula Sibilia mostra-nos o quanto na contemporaneidade a vida íntima é ficcionalizada e midiatizada. O saber do uso não passa apenas pela capacidade técnica do manuseio, mas sobretudo pela capacidade ética do discernimento.
Diríamos que a discussão teórica de Bobbio sobre a distinção entre virtudes fortes e fracas vai ao encontro dos contornos apresentados por Paula Sibilia sobre os aspectos éticos das sociedades performáticas. Em síntese, um glossário do que disse Bobbio:
Arrogância, a opinião sobre si mesmo maximizada.
Insolência, a arrogância ostentada.
Prepotência, abuso de potência ostentada e exercida.
Serenidade, aquele que deixa o outro ser o que é, ainda que o outro seja o arrogante, o insolente, o prepotente (BOBBIO, 2002, p. 40).
É possível confundir serenidade com fraqueza ou passividade. Mas, segundo Bobbio e tantos outros e outras que conhecemos, serenidade é para os fortes!
[1] ABREU, Caio Fernando. Caio de A a Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 64. [2] SIBILIA, Paula. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.