Favela da Nova Holanda: o canto misterioso da Enedina

A favela Nova Holanda fica no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, próxima à Avenida Brasil e à Linha Vermelha.
Enedina morava com o seu companheiro de mais de cinco décadas. Não tiveram filhos. O Santanna era de baixa estatura. Nordestino, negro, bigodinho ralo, camisa de manga curta desabotoada e músculos.
Santanna trabalhou como estivador no Porto do Rio de Janeiro antes de ser chamado de Porto Maravilha, entre o Centro e o bairro do Caju. À época, os trabalhadores do porto usavam a força do braço para carregar e descarregar cargas pesadas. Daí vinham os seus músculos torneados.
Hoje, para ser um bom estivador, basta conhecer os botões de comando dos guindastes e empilhadeiras.
Como parte do pacote da vida na estiva, Santanna adquiriu cedo o hábito de beber. Goladas generosas de cachaça antes de cumprir a escala de trabalho e imediatamente após o término do seu tuno. Esse era o rito mais generalizado da confraria dos estivadores no tempo em que o Santanna atuava.
Dia de pagamento era dia para ficar sóbrio, pois precisava acertar conta nas biroscas entre o Caju, local de trabalho, e a Nova Holanda, residência. Distância de 10 Km aproximadamente. O dinheiro que chegava em casa era o que sobrava. Enedina poupava a voz.
As mãos do Santanna eram cheias de calos. Mas não atrapalhava quando tocava violão, cavaquinho ou banjo. Mãos pesadas de um homem doce, seresteiro. Quando, já idoso, se converteu na Igreja Batista, sentava-se no primeiro banco, tendo sempre no colo um dos seus instrumentos.
Não conhecia o hinário. Nem sempre achava o tom. Não sabia ler partituras. Contudo, não perdia uma música. Tocava todas ao seu modo sem se preocupar com quem ouvia. Jamais ensaiou. Não fazia contato visual com os maestros ou regentes dos hinos congregacionais. Santanna tocava como vivia: suave no seu universo particular.
O momento sublime do culto era quando a Enedina saía do seu lugar, andando lentamente, solenemente, para assumir a tribuna para cantar. Solista com uma voz paralisante acompanhada por pianistas e organistas eruditas. Depois da conversão do Santanna, ele passou a tocar junto, ainda que os seus sons destoassem dos instrumentos eruditos e da voz da sua amada.
Afastava-se do microfone. Fininha, magrinha, com uma voz que preenchia o ambiente. Afinadíssima e com uma emoção… canto do fundo da alma! Oportuna na escolha do repertório. Mesmo quando eu era criança, lembro que quando a ouvia, geralmente eu me emocionava. Aquela voz me tocava de uma forma inexplicável.
Tão fininha! Vestidos florais com ombreiras. Passos arrastados como se estivesse ofegante. Mas quando cantava, era a própria força da natureza. Ou seria a força do vento do Espírito Santo? Voz potente ao cantar. Ofegante ao conversar.
Nos solos, balançava a cabeça como a recuperar o fôlego. Lentamente mexia o corpo no balanço da música. Como vento no bambuzal, mexia, mexia, olhando ora para o alto, ora para o Santanna.
O canto que ela produzia, embora fosse do repertório da música sacra clássica, era rústico. Outras solistas entoaram os mesmos hinos nas igrejas europeias nos séculos XVII e XVIII, conquanto Enedina fosse a solista da favela da Nova Holanda que cantava aquelas peças ao seu modo.
Generosa, deixava-se acompanhar pelo marido que produzia sons que só mesmo ele e ela entendiam.
Som cheio de mistério da mata. Som cheio de mistério. Música embreada na mística chiada, soprada e balbuciada. Angelical? Suponho que não. Estava mais para música humana da mulher evangélica favelada, conhecedora das agruras desta vida.
A minha cantora preferida foi diagnosticada com câncer nos ossos. Eu não era mais uma criança quando isso aconteceu. Tornei-me o jovem pastor da igreja da qual ela pertencia. Que privilégio o meu!
Passei a chorar enquanto a ouvia, não mais dos bancos da congregação agarrado a minha mãe, mas do púlpito. Geralmente quando chegava a minha hora de proferir a mensagem, meus olhos estavam marejados. Na ordem do culto, o momento da prédica era imediatamente após o solo.
Já era tão magrinha, perdeu mais peso. Agora as ombreiras dos vestidos florais ficaram desproporcionais. Ombros largos para pernas e braços finíssimos.
Cheguei na casinha da Nova Holanda para fazer uma visita. Isso faz parte das atividades pastorais fora do púlpito. Sentido de apascentar nas igrejas evangélicas tem a ver com cuidar das pessoas. Ficar perto dos órfãos e viúvas. Chorar com os que choram. Visitar os enfermos e consolar os enlutados. No entanto, minha ida não era protocolar como função laboral.
Quando em surto, Santanna gastava horas e dias construindo navios e gaiolas com palitos, gravetos, cordinhas e panos. Absorto no engenho de construir, não reparava muito no que estava acontecendo ao seu redor. Nesses dias, perdia completamente o interesse pelos instrumentos musicais. Ele não me reconheceu, sequer me olhou.
Enedina já estava acostumada e sabia lidar. O Santanna foi diagnosticado com esquizofrenia tardiamente, mas nada mudou no trato com ele. Mesmo quando a condição do companheiro não tinha um nome dado pelos médicos, ela sabia que às vezes era como se fosse uma criança que ela tinha que cuidar. As mãos eram ásperas, os músculos acentuados, os tons dos seus instrumentos eram destoantes. Contudo, Enedina sabia que ele era uma doçura de homem, tenro e presente ao modo dele.
Na visita, entre tantas gaiolas e navios expostos na varanda e no pequeno quintal, fui recebido com bolo de fubá e café. Enedina pegou o caderno de folhas amareladas pelo tempo como se mostrasse o seu mais valioso tesouro.
Disse-me que quando soube que seus ossos estavam fracos e quebrando facilmente, fez uma oração:
– Senhor, quebra-me os ossos. Mas não me verga a voz!
Dito isto, se pôs a cantar aqueles hinos que estavam escritos no caderninho. Tentei acompanhar. Santanna não se movia na nossa direção, estava em outra sintonia. Talvez o estivador sonhasse em sarpar em um navio bem grande, para bem longe, com a Enedina e ninguém mais. Nas gaiolas em que havia pássaros, talvez o Santanna buscasse o eco do mistério.
Eu fui lá para levar palavras de conforto, no entanto, perdi a voz.
Ela cantava o cancioneiro que desde menino a ouvia solar e me transportou para um lugar inominável. A memória afetiva que eu não sabia que tinha. Imerso no mistério do som da alma.
Nosso último encontro, último abraço, foi abençoado por um hino antigo. Ela sabia da minha solidão e dor, leu nos meus olhos a carência e o desamparo. Acostumada a ler a alma dos silenciosos, pegou as minhas mãos e olhando para o fundo da minha alma cantou:
Preciosas são as horas na presença de Jesus…
Se quereis saber quão doce é com Deus ter comunhão
Podereis então prová-lo, e tereis compensação
Procurai estar sozinhos em conversa com Jesus
E tereis na vossa vida, paz perfeita, graça e luz…
Literalmente caí em prantos. Afagado e acarinhado pelas mãos magras dela. Não era para ser assim, mas foi nossa última cena juntos, pastor institucionalmente deslocado e a solista favelada clássica.
A oração da Enedina foi atendida: chegou ao final da vida tão frágil que os ossos quebravam facilmente, enquanto a voz… intacta, afinadíssima, expressão da alma. Conforme pediu em prece, a voz não vergou.