Fim de ano e finitude
És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo, tempo, tempo, tempo (Caetano Veloso)
Voltávamos de um delicioso jantar em que comemoramos o aniversário do meu filho João Luca. Estávamos no carro. O trajeto do restaurante a nossa casa foi alongado, pois não havia pressa para chegar. O critério para escolher as curvas era simplesmente a paisagem mais bonita.
Animados fazíamos uma rodada de piadas. Nada de novo, as de sempre, mas tudo era motivo para risos. Cada um ao seu modo buscava um pretexto para sorrir. Era mais uma forma de homenagear ao aniversariante uma vez que ele passa o dia escrevendo e desenhando histórias em quadrinhos (HQ).
Parecia que o caminho longo levou ao esgotamento das histórias. Num brevíssimo intervalo, o silêncio se impôs, no que logo foi vencido pelo mais falante entre nós, o Pedro. O menino deixou de graça e numa tirada típica de uma tira da Mafalda mandou uma questão existencial:
– Pai, quando eu fizer 60, quantos anos você vai ter?
Demorei um pouquinho para responder. Na verdade, ganhei tempo para entender. Rapidamente pensei como poderia me esquivar. A melhor forma seria insistir com o humor, mas o ar com que a pergunta foi feita parecia que ele estava falando sério. Não dava para ignorar, disfarçar, dissimular, muito menos rir.
– 100. Quando você completar 60, eu terei 100 anos. Velhinho, né?
– E a mamãe?
– Bem, um pouquinho mais nova, 97 anos.
– E a vovó Raimunda?
– 130 anos.
– E o Luca?
Perguntou baixinho e desanimado.
– 67 anos!
O silêncio dessa vez ganhou mais tempo. E aí percebi que não se tratava de curiosidade qualquer, a questão era existencial mesmo. Pedro, novamente, interrompeu aquele silêncio fundo com uma coragem para falar o que preferíamos não ouvir:
– Pai, vocês não vão estar aqui quando eu fizer o meu aniversário de 60 anos! Só o Luca, talvez, né?
Desconcertado, concordei com ele.
Pela terceira vez o silêncio. Dessa vez parecia que ninguém poderia vencê-lo. Dizer o quê? Silêncio fundo, constrangedor, escancarado no senso de realidade, puro, óbvio, encharcado de amor, infantil, com tudo que isso implica.
Pelo espelho retrovisor, olhei para o banco de trás.
Minha mãe chorava olhando pela janela. Tendo o Pedro no colo, o choro mais sem som possível, discreto, quase envergonhado. Virou bem o rosto para a janela como se não quisesse atingi-lo com as lágrimas e aí despertá-lo para o fato de que ela chorava.
Luca chorava olhando para a outra banda. A janela da direita era só dele. Do riso ao choro sem sala de descompressão. O aniversariante saiu do universo das histórias em quadrinhos como que avistasse a porta larga da adolescência. Oportunidades e perdas, risos e choros, encontros e despedidas, datas comemorativas e fugacidades.
Pedro chorava olhando fixo para nada. Poucas lágrimas, mas elas desciam rápido devido ao peso.
Patrícia chorava quase que escondida no banco da frente ao meu lado. Calada estava, calada ficou. Não respondeu ao meu olhar. Não me ajudou respondendo ao inquérito inesperado. Fui diminuindo a velocidade como a querer diminuir a distância dela. Estava à mão. Mas também resolvi deixá-la só olhando a paisagem.
Por um instante ensaiei uma frase de efeito. Mas, fui vencido. Entreguei-me ao choro em plena comunhão com as pessoas que mais amo. Por ser o último a chorar, parece que abafei por mais tempo, quando veio, eu não soube ser discreto. Chorei com força com direito ao som.
Pedro trouxe essa questão em pleno dia do aniversário do irmão, claro, não porque quisesse roubar a cena. Mas era tudo tão pleno, estávamos tão felizes, tão juntos, amando tanto, que na sensibilidade dele intuiu:
– Meu Deus, um dia isso vai acabar! E eu gostaria que durasse para sempre!
Se esse não foi o motivo dele, certamente foi o meu.
Estar aqui e não sonegar o amor. É o que temos para hoje. A alternativa é economizar, por puro medo das ausências de amanhã. Sem pressa, mas com gula, vamos amar “como se não tivesse amanhã”.