Mãozinhas de Seda dos Isentões

O título foi dado por Raduan Nassar para falar do comportamento de intelectuais que fazem do mundo da erudição lugar de delicadeza calculada. O autor começa dizendo que uma das suas convicções mais sólidas é que se deve dizer aquilo que se pensa.

O livro Menina a caminho e outros textos foi publicado em 1997. Portanto, o conto “Mãozinha de seda” não é uma indireta para os doutos que se fazem de moucos e mudos em pleno 2019. Mas convenhamos, o texto em questão revela muito do comportamento dos isentos e recatados no nosso contexto atual.

Como um sugestivo contra ponto aos líderes e intelectuais que fogem dos seus compromissos sociais, porque têm muito a perder, Nassar dedica o seu conto a Octávio Ianni. Acerta na dedicatória uma vez que o possível constrangimento inicial se transforma numa inspiração mobilizadora. Constrangimento pelo fato de Octávio Ianni não ter negociado as suas convicções no mercado de ideias, algo que aparentemente acontece hoje e tem a ver com “instinto de sobrevivência”, dizem.

Embora desde moço soubesse que dizer o que se pensa é necessário, honesto e honroso, Nassar convive com a lembrança de uma voz dissonante. “A diplomacia é a ciência dos sábios.”

O conselho do bisavô vinha revestido de voz de autoridade, voz da experiência, voz da tradição. Não estamos perante a sabedoria livresca com citações de autores que evocam voz de autoridade, mas do conhecimento familiar contado em prosa amena mordendo o pão e bebendo café na varanda de casa. Voz revestida da sacralidade das rugas.

Em oposição à ideia de que dizer o que se pensa é necessário, o velho sentenciava para o bisneto: “A diplomacia é a ciência dos sábios”. Desdobramentos práticos que o velho esperava do menino quando adulto:

“O negócio é fazer média.”

“Nada de porraloquice. Me promete.”

“Foda-se o que a gente pensa.”

O que fez com que Nassar lembrasse do realismo do bisavô?

Eruditos, pretenciosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto! Em consequência desse aparente paradoxo, tenho notado que estão entregues a um escandaloso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia, Maria Santíssima!

As referências à linguagem religiosa são bem mais recurso literário do que expressão de crença. O que Nassar notou nas rodas dos figurões ensimesmados nos seus fardões, vestidos com distinção justamente para demarcar as distâncias, arrastando pantufas nos mármores limpíssimos, sem arranhar e nem deixar pegadas ou pistas, percebo nas paróquias de muitos sacerdotes e nenhum profeta.

Aconselhados pelo diplomático bisavô do Nassar, líderes, formadores de opinião, intelectuais, gente ilustrada, letrados, pastores e padres, personalidades, figuras públicas preferem o troca-troca fugaz.

Calados, consentem que os locatários dos palácios dos governos façam puxadinhos para suas famílias e eventuais colaboradores. Os observadores preferem não ver, preferem não saber, exilados nas suas bibliotecas preferem sumir por um tempo. Não, não é prudência. Pura covardia que nasce de um egoísmo “oceânico”.

Dizem que em Pindorama do conto de Nassar sábio são aqueles isentões que no mercado das ideias negociam suas convicções em troca de algumas gratificações que venham das sedes das paróquias ou das sedes dos governos.

Definitivamente, não tenho mãozinhas de seda. Não participo desse conluio. Minha referência ética não é um vovô bem-sucedido, mas um sujeito bem-resolvido disposto a repartir a própria vida. Um sujeito comprometido com o amor ao próximo a ponto de dividir o pão. Nesse seguimento, não é porraloquice expor as arrogâncias dos poderosos, muito pelo contrário, é compromisso profético.

No Um copo de cólera (livro de Raduan Nassar, 1978) encontro uma das melhores definições de profeta que já li, embora não fosse essa a conversa do autor. Faço uso assumidamente indébito da frase de Nassar para afirmar o que acredito ser um profeta frente às ofertas do mercado das ideias: “Ninguém dirige aquele que Deus extravia”.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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