Alguns religiosos falam de Deus como se ele fosse uma propriedade deles. Alguns ateus viveram com tamanha sacralidade humana, amaram tanto, doaram-se tanto, que sequer foi necessário pronunciar o nome de Deus.
Pepe Mujica
No mundo contemporâneo, Pepe Mujica (1935-2025) figura como ícone da simplicidade. Despojado, o poder não o tiranizou.
Talvez a grande contribuição de Mujica não tenha a ver com a arte de administrar com técnicas revolucionárias, mas acenar com possibilidades reais de descomplicar a vida. Quem sabe isso não se chama humanização?
Inspira mesmo àqueles que não partilham dos seus ideais políticos. O ex-presidente do Uruguai entre 2010 e 2015 foi confessadamente ateu.
Sebastião Salgado
Sebastião Salgado (1994-2025) se notabilizou como um dos maiores fotógrafos do mundo. Registrou tão de perto o sofrimento humano a ponto de afirmar que perdeu a fé na condição humana e em Deus.
Tragédias, catástrofes, desterros, exílios, êxodos, calamidades, genocídios registrados por um fotógrafo que chegou tão perto da coisa e o olhou por diversos ângulos, inclusive por dentro. Através das suas lentes denunciou que não era aceitável tamanha indiferença da dita humanidade civilizada e próspera,
Oliver Sacks
Oliver Sacks (1933-2015), neurologista inglês, descobriu aos 81 anos de idade que estava com múltiplas metástases no fígado. Como médico, tinha noção exata de que estava face a face com a morte. Embora admitisse o medo, o sentimento predominante era de gratidão.
Deixou sua marca como escritor em narrativas profundas sobre a condição humana em situações-limite. Narra inclusive como a família vivenciava a fé numa comunidade judaica ortodoxa. Nos seus artigos “finais” esclarece como gradualmente se tornou indiferente às crenças dos pais. Conquanto não fale de eternidade ou de Deus, demonstrou satisfação pela história de vida que construiu.
No único momento em que lida com o sentimento de hostilidade em seus artigos de despedida, direciona-o para a capacidade da religião para intolerância e a crueldade. Ressentiu-se porque os pais não o acolheram quando sua homossexualidade ficou evidente. Trataram-no como uma aberração.
Herbert de Souza
Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, semeador de utopias. Da clandestinidade nos anos de chumbo no Brasil para o exílio. Mas como um ser tão frágil fisicamente poderia assustar o sistema que fora implantado no país?
Aldir Blanc traduziu o sentimento de muitos ao compor O bêbado e o equilibrista. A volta do irmão do Henfil era o anseio pela volta da democracia, da cidadania e da ternura comprometida.
O Betinho começou sua militância social na Juventude Universitária Católica (JUC), mas do alto do seu ativismo em tentar uma vez mais o milagre da multiplicação dos pães, hemofílico, soropositivo, não acreditava mais em Deus.
Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Eis o legado do sociólogo, ativista dos direitos humanos. A magreza revelava a sua fragilidade, os olhos denunciavam a sua força e os acenos, a irredutível ação popular. Num termo cunhado por Maitê Proença para traduzi-lo, Santinho ateu.
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Sigo pistas da espiritualidade prosaica. Pessoas que revelam Deus com seus gestos, não necessariamente pelos ritos e gramáticas religiosas.
Os ateus são receptivos aos místicos porque ambos são do primado da experiência. Quanto aos que fazem da apologética propagando de convencimento, os ateus preferem o silêncio obsequioso.