Neste vasto e populoso país dito cristão, o espírito natalino é excepcional com data para começar e para terminar. Os seguidores de Jesus parecem resignados quanto à redução do Natal à condição de maior festa religiosa da nossa cultura.
Segundo o Censo de 2022 do IBGE, no Brasil, 83,6% da população se declara cristã (56,7% católicos; 26,9% evangélicos).
No Natal, a onda de solidariedade inunda os diversos espaços das nossas convivências. Descobrimos, no entorno, pessoas da nossa convivência que aceitam e precisam de uma cesta básica ou de uma gratificação de final de ano. Múltiplos agentes que de diferentes formas nos afetaram positivamente vivem realidades socioeconômicas de aperto e vulnerabilidade. Compartilhar um pouco do que temos e gratificar como se fosse a participação no nosso lucro, não chega a ser algo absurdo.
No Natal, lembramos que bem perto há pessoas em situação de abrigo, crianças ou idosos, que não têm um lar ou uma família para chamar de sua. Gastar um tempo para estar com elas seria de bom tom. A arte da convivência é um dos sinais mais simples da acolhida humana.
No Natal, corais e grupos musicais harmonizam vozes para acalentar internos nos hospitais. Músicas que dizem tanto têm o poder de transportar, cicatrizar feridas e minorar dores. Recitais e musicais nos corredores e enfermarias, em que pessoas lutam pela vida, arrepiam a pele e tocam a alma.
No Natal, parece que admitimos o hiato para o reconhecimento. Pessoas que colaboraram para que conseguíssemos realizar nossas tarefas ao longo do ano ouvem finalmente um “muito obrigado”. Como é bom saber que as nossas realizações, sejam elas remuneradas ou não, tiveram a sua importância! Faz muita diferença termos o retorno que o nosso trabalho foi percebido.
No Natal, revistamos a memória. Seja tirando do alto as caixas com fotografias impressas ou com a rolagem dos arquivos eletrônicos. Saudades que nos habitam alimentadas pela imagem. Rastros de tempos rememorados que nos torna distraídos para o aqui e agora. Sinais, como a estrela de Belém, que nos situam no caminho. A luz da memória que aponta para gente tão comum como Jesus, Maria e José.
O deslumbre com os efeitos pirotécnicos das luzes artificiais encobre a visão do que é essencial. A estrela de Natal lança luz sobre o simples. O essencial na singeleza do nascimento da esperança que contradiz a realidade, cheia de ranços políticos e arrogância religiosa.
No Natal, mesa posta, prato fundo, memória gustativa, copo cheio e sorrisos largos. Família nos seus arranjos próprios, sem se constranger com as idealizações dogmáticas dos vigias da felicidade alheia. Enquanto festejamos a vida, rimos das vivências remotas, somos cúmplices em erros e acertos. Por um dado momento, em meio ao barulho, dispersamos e reparamos em cada rosto à mesa. É gente nossa. Ali estão os nossos. Gestos que disfarçam o amor. Brincadeiras que dissimulam as lágrimas.
No Natal, na favela, uma igreja resolveu substituir o seu culto dominical no templo por uma caminhada pela comunidade. O objetivo não era levar ninguém para a igreja ou entregar algum tipo de donativo natalino. A boca de fumo não foi evitada. Junto com os meninos, um pequeno grupo da igreja, sem qualquer aparato, fez uma oração no que foi acompanhado por eles. Vozes embargadas, olhos marejados, abraços tensos e olhares maternais. Por um lapso de tempo, meninos armados foram lembrados de um tempo não muito distantes em que recebiam brinquedos de Natal e eram chamados pelo nome próprio.
A estrebaria pela qual passamos no domingo 21/12, dia do meu aniversário, jamais vi representada em presépios montados nas igrejas cristãs.
Os gestos humanos inspirados no amor de Jesus eram para ser mais frequentes no cotidiano.
No entanto, parece que o espírito natalino se resume a uma data religiosa abduzida pelo espírito do capitalismo.