O Vaqueirinho na manjedoura

Para Ferreira Gullar (in memoriam)

Gerson de Melo Machado, de 19 anos, o Vaqueirinho de João Pessoa (PB), não teve a mesma sorte de Daniel na cova dos leões. Morreu no domingo (30/11) após invadir e ser atacado por uma leoa que defendia o seu território no Parque Zoobotânico Arruda Câmara.

José e Maria entraram no estábulo porque naquela noite não havia lugar nas hospedarias nem nas casas das famílias. Alta temporada na cidade turística de Belém, na Judéia. O curral é lugar de descanso para os animais.

Não havia lugar em casa

Na cidade de Mangabeira (PB), viviam a mãe e a avó do Gerson. Ambas afetadas pela esquizofrenia. Os quatro irmãos foram adotados. Mas não havia lugar para o Gerson. Crianças com transtornos mentais dificilmente são adotadas. Gerson teve breves experiências com famílias acolhedoras. Ele fugia. Andarilho que não encontrava repouso nos acolhimentos destinados a gente como ele. A fuga enluarada de um menino que não se acostumava com as sombras, nem com o que se convencionou chamar de família tradicional. Os transtornos carregados pelo Vaqueirinho pareciam não caber dentro de casa.

A primeira noite de Natal foi marcada pelo “não-lugar” para a família que jamais soube o que é um presépio. Jamais, em hipótese alguma, aqueles três formariam uma estrutura familiar tradicional. Maria estava grávida e nada ali estava esterilizado. Sons e cheiros de animais que demarcavam o seu espaço. A jovem não carregava panos do enxoval. José, artesão, não teve condições de moldar um berço para o recém-nascido. Carpinteiro sem madeira, longe do lar e da oficina.

Não havia lugar na escola

A conselheira tutelar, Verônica Oliveira, informou que a primeira vez que Gerson chegou ao Conselho Tutelar, por volta dos 10 anos, perambulava pela BR-230. Dizia querer votar para casa. Não havia rotina escolar. Depois da sua trágica morte, nenhuma professora foi entrevistada. Não há registros de matrículas e pertencimento à rede de ensino. Gerson não foi aluno e não teve colegas na escola. Entre os 12 e 18 anos, era recorrente sua entrada no sistema socioeducativo. Não resistia, na verdade, provocava situações para ser apreendido e posto nas instituições do sistema socioeducativo. Ao completar 18 anos, perdeu o direito a esta modalidade de acolhimento. Sua estratégia foi desmobilizada.

O recém-nascido foi posto na manjedoura porque não havia outro lugar. Manjedouras eram, geralmente, estruturas no formato de cuia para colocar alimentos ou água para os animais. Utensílio artesanal adaptado para ornar como traço da cultura. Adaptamos recursos naturais para atender necessidades humanas. Jesus foi posto na manjedoura na falta de uma outra estrutura mais apropriada. José, o carpinteiro, teria algum tempo para ensinar o trabalho artesanal ao filho quando crescesse. No entanto, manjedoura não era artigo que se encomendava. Estrutura que qualquer um improvisava para alimentar os animais. Marceneiros dão retoques, ajustes finos, em móveis de madeira de lei. Quanto as manjedouras, qualquer um improvisa com madeiras tipo sobra de obra.

Não havia lugar na igreja

Segundo a conselheira tutelar, Verônica Oliveira, depois que completou 18 anos, o Gerson provocava situações para ser contido no sistema prisional. Encontrava na condição de presidiário comida, rotina, proteção e abrigo. Embora não fosse um residente fixo, o Vaqueirinho fazia da cela da prisão um abrigo temporário. Nenhuma nota de que o Gerson tenha buscado abrigo em alguma igreja. Sentia-se mais seguro, ao que tudo indica, nas instituições socioeducativas ou prisionais.

Antes de chegar ao destino, Maria e José andaram longo perímetro entre Nazaré (Galileia) e Belém (Judeia). Estima-se uma distância em torno de 150 km. Trajeto a pé que levava dias para ser vencido. Em diversas culturas, cultiva-se a benquerença da hospitalidade, sobretudo quando se trata de vulneráveis. Os traços físicos evidentes de Maria que diziam que ela precisava ser acolhida após a longa e árida caminhada. Parece que José não cogitou encontrar abrigo no pátio do templo. Não havia lugar para o parto de Maria no lugar de culto da cidade de Belém. Mudaria a rotina litúrgica e atrapalharia o enredo religioso. Naquelas condições, o nascimento de Jesus nos espaços contíguos ao templo comprometeria a atenção dos fiéis que buscavam aqueles espaços só para o culto.

Havia lugar perto dos animais

Nise da Silveira criou a convicção de que a condição esquizofrênica necessitava de um ponto de apoio quando do seu tratamento clínico, alguém que despertasse o afeto e a confiança do doente. Então, para além dos métodos tradicionais da psiquiatria, acreditava no poder terapêutico das relações.

No tratamento da esquizofrenia, o afeto assume posição central. Essa concepção foi alargada para além dos seres humanos. O afeto despertado e cultivado com os demais seres vivos: plantas, cães, pássaros, gatos etc.

Gerson, o Vaqueirinho, buscou na cova dos leões o que não encontrou em casa, na escola e na igreja. Afeto!

Gerson buscou nos cavalos e leões o que não encontrava nos humanos.

Ao chamar os animais que desempenhavam propósitos terapêuticos de “coterapeutas”, Nise da Silveira não queria ofender ninguém. Apenas estimular a nossa humanização olhando para os bichos.

Na tradição cristã, convencionou-se dizer que o presépio de Natal foi “inventado” por São Francisco de Assis. Encenação para retratar o nascimento de Jesus tendo como cenário a estrebaria usando animais vivos para dar realismo à cena.

Francisco, o Chico de Assis, ao pensar o Natal, trouxe os bichos para o centro da cena. Acolhedores por natureza em que afetos valem mais do que regras morais ou convenções sociais.

 

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, professor universitário, pesquisador (Grupo de pesquisa Passagens, IFCS-UFRJ), cientista social e pastor. Doutor em Ciência Política (Iuperj, atual IESP-UERJ), Doutor em Teologia (PUC-RJ). Pós-doutorado em Sociologia (USP).

OPINIÃO
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