Prefácio I: A fraquejada de um país terrivelmente evangélico
Temos no presente volume, escrito de modo refinado por Valdemar Figueredo Filho, uma releitura de Jeremias. Há de tal profeta certa percepção distorcida que o apresenta apenas como alguém que lamenta os erros humanos. Não, o saber positivo do profetismo está no fato de que, ao constatar as fraquezas e desgraças dos homens, ele indica vias novas e frutíferas no campo do direito, da política, da religião. Deixa de surpreender, assim, que um dos maiores pensadores da ética, Baruch Spinoza, comece o seu estratégico escrito sobre os laços entre a política e a teologia com a análise da profecia.
Segundo Spinoza Isaias e Jeremias atestam que o profeta tem como função advertir contra o erro de todos os povos. Aliás, os mesmos profetas ensinam que o amor para com o próximo é mais importante do que as cerimônias religiosas. Como diz Valdemar Figueredo Filho em frase inspirada, “Ler os profetas nos coloca em sintonia com o senso de justiça e com a esperança equilibrista”.
Quando recordamos que certa operação policial truculenta invadiu uma universidade brasileira e humilhou pessoas sábias, exibindo o nome da música que amaldiçoou a ditadura sanguinária de 1964, notamos o quanto importa retomar o profetismo. Ele joga luz nos recantos escurecidos da consciência nacional. Mas seguindo a lição spinozana, devemos dizer que a profecia não se refere a um povo apenas, mas aos povos. Na cadência suave dos versos, Valdemar castiga os pecadores que se imaginam santos: eles incarnam Satã. Por exemplo as linhas seguintes: “Às vezes acho que o Brasil foi invadido por uma praga, mas não como um enxame de gafanhotos, algo como enxame de demônios. Quanta ira! O empoderamento de gente que aparentemente estava acumulando raiva. Quanto desalento! A tristeza de gente que ao orar se sente como se estivesse falando sozinha”. Como se estivesse falando sozinha: de fato, quem não capta o Outro divino ao rezar fala a si mesmo, não existe diálogo. Solidão atroz. E quem sofre de solidão, mata. É a cultura do ódio que invade nossas casas, ruas, palácios.
Percorri os passos da Via crucis entoada por Valdemar encantado pela beleza da prosa poética, assustado pelo brilho do engenho e temendo pelos advertidos na sua retomada profética. O parágrafo de uma entrevista concedida por ele vincou minha alma de modo perene: “Este profeta se rebela contra tudo e todos — em outro livro, quando se refere a Jeremias, um rei diz: ‘lá vem o tal do agitador’. Ele escreve em linguagem poética, profética, um texto muito forte, muito contundente. Fala que ‘as nossas crianças estão exaustas, as mulheres estão torradas pelo sol’, denunciando o trabalho escravo. Queixa-se que as riquezas estão sendo mandadas para fora de Israel. Diz coisas como ‘os nossos jovens já não dançam, os nossos velhos já não se sentam nas praças’. Mostra um cenário de caos social, de um povo sofrido, distante de Deus”. Sim, como evidencia de modo inequívoco o povo brasileiro, pois é dele e de todos os povos que falamos, ajunta um rebanho de crentes sem Deus. E para preencher o vazio infinito da ausência divina vieram a morte, os ódios, as “redes sociais”.
Na Capela Sixtina a imagem de Adão se aproxima do Criador por um dedo. Aquele elo se quebrou, não por culpa da secularização moderna, mas pela religião sem caridade, sem fé, sem esperança. Que os versos de Valdemar nos ajudem a retomar o divino, nos afaste do humano, demasiado humano.
Roberto Romano
Professor titular aposentado de Ética e Filosofia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)