Profecia, Poesia e Política: 90 anos de Pedro Casaldáliga
Pode vir alguma coisa boa da aldeia de Balsarei? Pedro Casaldáliga Plá nasceu em 16 de fevereiro de 1928. Portanto, no ano em que escrevo este artigo, o Catalão Casaldáliga recebe homenagens pelos seus 90 anos.
A Guerra Civil Espanhola aconteceu entre 1936 e 1939. Os Falangistas liderados por Francisco Franco, apoiados pelos setores tradicionais da sociedade espanhola (Igreja, Exército e proprietários rurais), alimentavam o discurso de anticomunismo. Teve como apoiadores externos a Alemanha nazista e a Itália fascista.
A Frente Popular opunha-se ao golpe querendo garantir a democracia espanhola. Coesão política entre sindicatos e partidos de esquerda. Contava com o apoio externo da União Soviética. A Guerra Civil sangrenta terminou em abril de 1939, quando começou a ditadura chefiada por Francisco Franco. Ditadura fascista que ficou conhecida como Franquismo.
Setores da Igreja espanhola foram cúmplices e vítimas da Guerra Civil.
Pedro Casaldáliga desembarcou no Brasil em 26 de janeiro de 1968. Aqui grassava a ditatura militar sem o capítulo da guerra civil. O então legítimo presidente da República, João Goulart (1918-1976), abdicou do posto justamente para evitar a eminente guerra civil. “Jango” foi deposto pela junta militar em 1964 sob a acusação de que queria implantar o comunismo no país.
Setores da Igreja brasileira foram cúmplices e vítimas do golpe que culminou na ditadura militar.
O que precipitou a Guerra Civil espanhola em julho de 1936? É fato que a Europa em crise era um barril de pólvora. Pós-Primeira Guerra e às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Conflitos que denotam afirmação das nacionalidades e demarcações das fronteiras. Neste tempo, que desavisados poderiam caracterizar como hiato, intervalo ou vala histórica, processos abrangentes vividos na Espanha comprovam o quanto a noção de nação evoca os sentidos de construção e contingências e não o de natureza.
No raiar da virada do século, em pleno ano 1900, a Espanha fazia lembrar bem mais as dinastias absolutistas medievais do que uma nação europeia na modernidade. País agrário, alto índice de analfabetos, forte influência clerical e fraca industrialização. Diante do quadro interno precário, a Espanha tornava-se vulnerável às crises econômicas externas (BUADES, 2014, p. 18).
A classe média no Brasil mostrou-se entusiasmada com o golpe militar em 1964. Havia a esperança que com o golpe ocorreria o rápido processo de recuperação econômica. Assim como eram receptivos ao discurso que postulava o combate extensivo à corrupção e ao comunismo, a classe média ansiava por um golpe rápido contra a inflação. O projeto consistia na retomada econômica via investimento do capital internacional aliado à condução política via ditadura militar. Sendo que, em 1968, era possível verificar o desencanto da classe média: “O golpe fora bem-vindo para garantir a sua participação política. Seus direitos e prerrogativas. Para deter a inflação, preservando, porém, o seu poder aquisitivo” (REIS FILHO, 2008, p. 20).
Alguns eventos marcantes do ano de 1968: acirramento da linha dura da ditadura (Ato Institucional nº 5 – AI-5); rebelião estudantil (Passeata dos cem mil); desencanto da classe média (o apoio ao regime golpista deixou de ser incondicional). Exatamente neste ano “mítico” da história do Brasil é que chega ao país o Padre Pedro Casaldáliga, então com 40 anos de idade.
Profético
Consagrado Bispo de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, em 1971. A atuação do Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia nada fazia lembrar um homem com sequelas do fascismo espanhol. Demarcou suas posições políticas logo de saída com a publicação de um tipo de carta de apresentação do que viria a ser o seu ministério profético. Lançou em plena ditadura militar brasileira na sua fase mais dura o documento: “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Explicitamente o Bispo do Araguaia estava dizendo que não ficaria neutro, tinha lado, combateria como pastor pelas suas ovelhas: posseiros, índios, peões e pobres (BOSI, 2006, p. 9).
Na sua carta pastoral, deixa explícito que recebia a consagração de bispo no ânimo do serviço. O bispado não fora confundido como título honorífico que demarcava ascensão na hierarquia da igreja, nem como distinção para o exercício do poder. “Se ‘a primeira missão do bispo é a de ser profeta’ e ‘o profeta é aqueles que não têm voz daqueles que não têm voz’ (card. Marty), eu não poderia, honestamente, ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal” (CASALDÁLIGA, 1971).
Sem embargo, a visão demarcava bem mais do que os entornos geográficos do que seria a Prelazia de São Félix do Araguaia. O ser bispo implicava necessariamente em ser profeta. E o ser profeta o colocava perante uma realidade social de exploração que ele nomeia como “momento publicitário”. Essa expressão sutil queria dizer que os projetos em curso na Amazônia pelas autoridades governamentais geravam mais desigualdades e acentuavam as explorações dos recursos naturais e humanos. Como calar diante dos descalabros? Mas, como falar em um sistema totalitário?
A voz profética do Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia foi audível dentro e fora da Igreja, dentro e fora do Brasil. Apesar dos recalcitrantes na Igreja e dos latifundiários do Araguaia, apesar da ditadura militar, a voz profética foi ouvida. Profecia não reduzida a discursos. O projeto de vida assumido por Casaldáliga era em si um pronunciamento profético.
O panorama sócio-pastoral traçado por ele se constitui numa análise de conjuntura que revela estudos sistemáticos tendo por base fontes primárias. Além do aparato teórico que mobiliza, o autor revela dados sobre os sertanejos, indígenas, peões e fazendeiros latifundiários. Dados que foram colhidos na pesquisa de campo com observação participante. Enfim, Casaldáliga, além de ler a realidade, a encarnou. Não foi apenas um observador obsequioso, fez-se um igual, tomou as dores, encarnou a missão.
Não quero minimizar as fortes influências sofridas pelo Bispo do Araguaia. Sabidamente foi responsivo ao espírito do Concílio do Vaticano II (1962-1965). Tornou-se uma das vozes da Teologia da Libertação. A situação política na qual estava inserido tinha semelhanças com outras realidades na América Latina. Portanto, o profeta influenciado pelos novos ares também influenciou a outros através do seu testemunho de fé e coragem.
Como singularidade, o profeta que encarnou a missão com destemor, também solfejava poesias com candura. A frase atribuída a Che Guevara retrata bem o profeta poeta que é Pedro Casaldáliga: “Endurecer, sem perder a ternura”.
Poético
A poesia de Casaldáliga não funciona como desafogo ou como pretexto para destilar amarguras. Pelo contrário, em plena luta renhida ele desenha com seus versos um autêntico testemunho evangélico. Combater o mal nas suas multiformes expressões. Mas o seu combustível de vida não passa a ser o ódio. Permanece o amor. Nos seus Versos Adversos, demonstra que não vergou frente às hostilidades dos inimigos que estavam à espreita:
Eu morrerei de pé como árvores.
Me matarão de pé.
[…]
De golpe, com a morte,
Minha vida se fará verdade.
Por fim terei amado! (CASALDÁLIGA, 2006, p. 22)
Resignado? Não. Amargurado? Também não. Conforme a expressão de outro poeta, Casaldáliga chega aos 90 anos florindo e cheirando a mata, “cheio de seiva e verdor” (Salmos 192.12-14).
Mais do que um sobrevivente aos sistemas totalitários do fascismo espanhol e da ditadura militar brasileira, o Bispo do Araguaia floresceu e reverdeceu mesmos nos terrenos mais duros da existência.
A encarnação é também viver a flor da pele, nos extremos humanos, nas profundezas das matas, no silêncio do Rio Araguaia. A encarnação empática sentida pelo profeta e cantada pelo poeta sem qualquer possibilidade de dicotomia. Encarnação só é possível no ser integral que sequer tenta riscar a linha divisória entre espiritual e material. A vida inteira na inteireza do poeta profeta:
No ventre de Maria
Deus se fez homem.
Mas, na oficina de José
Deus também se fez classe. (CASALDÁLIGA, 2006, p. 43)
Neste ensaio, pouco está importando os enquadramentos bipolares que eram recorrentes no contexto da Guerra Fria. Seria simplista dizer que Casaldáliga bebia na fonte marxista e assim desqualificá-lo como subversivo na dimensão política. Como leitor do poeta Casaldáliga, sublinho que sua pertença que sobressai é a do homem que a partir da sua comunhão com Deus se interessa pela condição humana na sua inteireza. Destoa da imagem do Bispo paramentado para os ofícios litúrgicos nas catedrais. Destoa da condição de poeta de gabinete que se apresenta eventualmente em saraus concorridos.
Pela estrada de Emaús,
Caminhando lado a lado
Sem conhecer-te Jesus,
Peregrino disfarçado…
Peregrino impertinente,
Disfarçado em todo irmão
Que caminha com a gente
Forçando a luz do poente
Querendo partir o pão […] (CASALDÁLIGA, 2006, p. 46)
A fúria do profeta contra todo tipo de injustiça convive com a teimosa esperança do poeta. Casaldáliga inspira tanto pelo que diz como pelo que vivencia. O poeta não desautoriza o profeta. O profeta não envergonha o poeta. Contudo, o testemunho público do menino da aldeia de Balsarei que veio a transformar-se no ancião do Araguaia, afirma a subversão na sua plenitude. A subversão que se consubstancia no seguimento a Jesus.
Lacônico, afirma que as suas posições políticas não nascem dos manuais ou das filiações políticas partidárias. Casaldáliga, a partir da sua confissão de fé, afirma-se como subversivo: “Profeta é aquele que grita com os olhos” (CASALDÁLIGA, 2006, p. 110). “Tudo é relativo, menos Deus e a fome” (CASALDÁLIGA, 2006, p. 121). Portanto, “Ao Evangelho e à esquerda lhes cabe ser oposição” (CASALDÁLIGA, 2006, p. 124).
Conclusão
No Brasil atual em que temos tantos motivos para nos envergonhar na relação entre política e religião, julguei oportuno, ainda que brevemente, remeter ao quadro comparativo entre fascismo espanhol e ditadura militar brasileira. Vivemos um tempo sombrio em que fundamentalismo religioso cristão flerta com movimentos políticos aparentemente de extrema-direita. O fervor religioso na mesma panela de pressão do fanatismo político, em alta temperatura, historicamente, produz um caldo de violência.
A figura profética de Pedro Casaldáliga é um convite para “esperar contra toda esperança humana” (Romanos 4.18). A imagem do poeta desligado da realidade é tão ultrapassada quanto a ideia de que o místico é um solitário. Em Casaldáliga, mística é empatia que descobre o outro no caminho assim que o pão é partido.
Conta-se que Carlos Drummond de Andrade teria dito sobre Vinícius de Morais: “De todos nós, Vinicius foi o único que viveu como poeta.” Parafraseando, aos 90 anos, Pedro Casaldáliga convida-nos à coragem profética e à beleza poética. Vivemos um tempo adverso na política brasileira. Que o profeta-poeta do Araguaia nos inspire!
Referências
BOSI, Alfredo. Prefácio. In: CASALDÁLIGA, Pedro. Versos adversos: antologia. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006.
BUADES, Josep M. A Guerra Civil Espanhola. São Paulo: Ed. Contexto, 2014.
CASALDÁLIGA, Pedro. Orações da caminhada. Campinas: Versus Editora, 2005.
______. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 10 out. 1971. Carta Pastoral.
______. Versos adversos: antologia. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006.
REIS FILHO, Daniel Aarão. 1968: a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.