08 de janeiro bíblico de Adonias

O primeiro capítulo do livro bíblico de I Reis soa atual. A história se repete como farsa.

Seja em tempos bíblicos remotos ou no Brasil contemporâneo, golpistas alegam perseguição religiosa como último recurso político para fugir das responsabilizações da justiça.

O Rei Davi já estava bem velho e o assunto que ocupava a pauta política do reino era a sucessão. Absalão, primeiro na linha sucessória, havia morrido. Agora, o filho mais velho era Adonias.

Adonias acordou numa bela manhã com uma vontade enorme de reinar. Impaciente com a ordem natural das coisas, planejou um golpe em parceria com Joabe, comandante do exército de Davi, e Abiatar, o sacerdote.

O governo ilegítimo do golpista seria sustentado por duas forças vitais: militar e religiosa.

Os adeptos da tomada do poder entenderam que precisavam reunir mais apoios. Planejaram uma “festa selva” para engajar as elites políticas e econômicas. Enquanto serviam o banquete quente, prometiam isenções de impostos e rodízio de poder. Foram convidados todos os filhos de Davi, exceto Salomão.

Como ostentação de poder, Adonias convocou uma manifestação para levar o povo para a rua e liderou um desfile militar com carros de guerra e cavalos. O braço militar forte para não deixar dúvidas.

Em plena manifestação pró-golpe, realizaram um culto liderado pelo sacerdote Abiatar. Conforme os rituais religiosos daquele povo, naquela época, sacrificaram no altar muitos touros, ovelhas e bezerros. Um mimo caro para comprar o apoio de Deus.

Os valentes de Davi envelheceram com ele, sequer foram convidados para a festa. Ministros responsáveis pela administração e conselheiros do rei, de heróis, tornaram-se marcados para morrer. O reino de Adonias seria a terra dos novos empreendedores, ressentidos com os sistemas político e econômico vigentes.

Quando só faltava os golpistas invadirem o palácio, derrubar o rei Davi da cama, usurpar a coroa da sua cabeça e vandalizar os símbolos de poder, entrou em cena o profeta Natã.

O profeta aconselhou Bate-Seba, mãe de Salomão, para que ela fosse falar com Davi e desenvolvesse dois tópicos na conversa: primeiro, que o informasse que naquele momento Adonias estava forjando o golpe de “Estado”; e posteriormente, lembrasse ao rei que ele havia jurado que o seu sucessor seria Salomão. Essa conversa aconteceu na intimidade do quarto de Davi e não na sala de despacho real.

O profeta Natã chegou ao palácio e confirmou o que Bate-Seba estava dizendo. Enfático, deu a lista das pessoas que não foram convidadas para a “festa selva”: Natã (o profeta), Zadoque (o sacerdote), Benaías (o chefe da guarda pessoal do rei Davi) e Salomão.

Para bom entendedor, Natã configurou para o rei que tais omissões de Adonias funcionavam como a minuta do golpe.

O povo estava esperando uma declaração pública imediata do rei declarando quem era o seu sucessor. Davi convocou o conselho e orientou sobre os procedimentos para a coroação de Salomão.

Montado da própria mula do pai, Salomão é levado até a fonte de Giom pelas autoridades diante do testemunho do povo. Natã e Zadoque, respectivamente, profeta e sacerdote, testificaram a legitimidade do poder. Conduziram o ritual de unção do novo rei. Ungido com azeite, o povo gritou:

–  Viva o rei Salomão!

Fora assim debelada a tentativa de golpe.

O alvoroço foi tão grande com o povo comemorando a coroação de Salomão que o pessoal na “festa selva” ouviu e se assustou. Souberam naquele momento que fracassaram e estavam na “ilegalidade”. Produziram, fartamente, provas contra si.

Após a coroação de Salomão, esvaziamento da festa, Adonias, apavorado com a iminente punição, fugiu para a Tenda do Senhor e se agarrou às pontas do altar.

Foi buscar refúgio atrás dos símbolos sagrados não por uma questão de fé, mas por puro oportunismo político. Era o último recurso, não apelar arrependido para Deus, mas usar o nome de Deus como escudo político.

Sabe como termina o primeiro capítulo do livro bíblico de I Reis?

Adonias pede anistia escudado pelos símbolos religiosos. Faltou dizer que o reinado de Salomão o perseguia por motivações religiosas. Salomão determinou que o irmão golpista fosse para a prisão domiciliar.

Sabe como começa o segundo capítulo de I Reis?

Adonias, mesmo em prisão domiciliar, articulava politicamente para desestruturar o reino de Salomão e reeditar o golpe. Reincidente, foi executado sob o mando de Salomão.

Quanto aos golpistas brasileiros, que estão pedindo anistia alegando perseguição religiosa, são dissimulados, não obstante, bíblicos.

 

 

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, professor universitário, pesquisador (Grupo de pesquisa Passagens, IFCS-UFRJ), cientista social e pastor. Doutor em Ciência Política (Iuperj, atual IESP-UERJ), Doutor em Teologia (PUC-RJ). Pós-doutorado em Sociologia (USP).

OPINIÃO
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