Miragens e vertigens: as críticas ao Apocalipse nos Trópicos de Petra Costa

O filme de Petra Costa investiga o crescente conluio entre lideranças evangélicas e forças políticas.

A cineasta Petra Costa produziu o documentário, em parceria com Alessandra Orofino, sobre as ameaças recentes à democracia que o bolsonarismo protagoniza.[1]

Nesta trama, os evangélicos se impuseram no centro do palco com figurino nada austero.

O roteiro não parece ter sido elaborado por uma dramaturga no estúdio interessada em atrair grande público. A cineasta foi atrás da história através da pesquisa de campo. Mirou no seu objeto de pesquisa e passou a acompanhá-lo no seu habitat natural.

Para diminuir a frustração por expectativas mal engendradas, Petra não é uma evangélica progressista ofendida, não é uma teóloga especializada em escatologia, não é uma acadêmica defendendo uma tese na universidade nem uma militante de esquerda produzindo panfleto para influenciar na disputa eleitoral de 2026.

Apocalipse nos trópicos é uma produção sabiamente sem a pretensão enciclopédica, faz um recorte da nossa complexa realidade em que o religioso e o político não guardam distâncias e não reconhecem fronteiras.

Na investigação da documentarista, a etnografia antropológica é utilizada como método de pesquisa no sentido de olhar para o microcosmo para fazer pensar no macrocosmo.

O fato de colocar o empresário e líder político Silas Malafaia como protagonista não leva à dedução que ele é o pastor mais poderoso ou mais importante do país. De fato, Malafaia é um personagem emblemático e talvez seja a figura pública que melhor veste o figurino “terrivelmente evangélico”.

A crítica ao documentário explorando o argumento de que a Petra deu palco ao Malafaia, fala mais da nossa repulsa do que do projeto da cineasta.

A propósito, para muitos evangélicos, Malafaia é o elefante na sala que se pudéssemos esconderíamos no quarto ou porão. Definitivamente não dá para considerá-lo excêntrico. Ele está no centro da política nacional, assim como no centro do movimento evangélico no país. Isso não se deve a uma escolha da roteirista do filme, Malafaia ganhou no grito o seu papel de bufão.

As críticas ao “Apocalipse nos trópicos” reclamaram mais do que não está posto do que propriamente do conteúdo mobilizado: faltou aprofundar o debate sobre a extrema-direita no Brasil; devia ter feito uma taxinomia dos atores políticos evangélicos identificados como terríveis; ignorou o contraponto apresentado pelos evangélicos progressistas e mesmo pelos evangélicos conservadores de direita que não embarcam no golpismo da extrema direita; subestimou o tanto que os católicos fundamentalistas reacionários participam da trama bolsonarista; faltou o quadro comparativo das diversas hermenêuticas adotadas para a interpretação do livro de Apocalipse…

Achei exageradas as críticas, sobretudo as que vieram do campo progressista evangélico.

Evidente que o conteúdo do documentário é passível de muitas críticas (políticas, teológicas, estéticas etc.). Seria mais justo nos atermos ao conteúdo apresentado cientes de que se trata de um recorte da realidade e não uma cronologia sobre a distopia brasileira a partir de 2016 até 2025.

Em artigo, Luís Nassif chama atenção para feição da crítica ligeira que, “em vez de criticar o que o documentário diz, prefere se concentrar no que ele não se propôs a dizer. Com esse critério, nenhuma obra literária ou cinematográfica escaparia ilesa.”[2]

Acompanhando a repercussão, algumas críticas me pareceram bem a feição das arguições frequentes nas bancas de mestrado e doutorado. É um tal de “faltou dizer”, “recomendo o acréscimo do autor tal”, “senti falta daquela outra perspectiva”, “seu trabalho seria mais rico se fosse comparativo”…

Funciona a lógica educada da desqualificação pelo simples fato de os autores optarem metodologicamente pela delimitação do objeto estudado e ter inadvertidamente deixado de fora as preferências dos avaliadores.

Quando nos debruçamos no conteúdo mobilizado pela Petra neste documentário, constatamos que conhecíamos todos os pedaços soltos. O grande mérito foi encaixar as partes e nos oferecer uma visão nova, panorâmica, bem a feição de contar uma história com figura e fundo, narrativa à Gestalt em que pedaços soltos são organizados sugerindo uma interpretação com coerência.

O material do documentário é oportuno para provocar debate, jamais se apresentou como manual sobre o tema. Sabidamente incluso assim como a realidade.

A captura do bolsonarismo de setores evangélicos está em curso. Outro modo de dizer: o objeto observado pela cineasta está em movimento e evolução, não parou para ser filmado ou girou para ser bem enquadrado na fotografia.

Neste sentido, acho que o filme fez uma documentação importante para chamar atenção para um fenômeno social crucial para entendermos o Brasil contemporânea.

 

 

[1] Documentário Apocalipse nos trópicos. Petra Costa (direção e roteiro) e Alessandra Orofino (produção). Netflix, 2025. Duração: 110 min.

[2] Nassif, Luís. A má vontade sobre o documentário “Apocalipse nos Trópicos”. Disponível em:  https://jornalggn.com.br/cinema/a-ma-vontade-sobre-o-apocalipse-nos-tropicos-por-luis-nassif/. Acesso em: 19 ago. 2025.

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, professor universitário, pesquisador (pós-doc USP), cientista social e pastor