No exercício da função de professor e orientador de estágio clínico em psicologia costumo lidar com situações diversas. Com base numa dessas vivências, venho ao mosaico compartilhar uma crônica. O cerne do material diz respeito a um problema amplo: a intolerância religiosa.
Uma mulher, declaradamente umbandista, na casa dos 30 anos, estava em busca de atendimento psicológico para o filho, atualmente com 10 anos de idade, via Serviço-Escola de Psicologia de uma universidade situada no estado do Rio de Janeiro.
Durante a entrevista de triagem a mãe não ficou retraída quanto a sua religião, foi logo dizendo que era umbandista e que costumava levar o seu filho para o terreiro. Todavia, quando foi indagada sobre a religião do filho – questão presente no formulário de cadastro – a mãe prontamente disse: Coloca aí que ele é católico!
A fala causou estranheza na estagiária que retrucou: mas ele não frequenta o terreiro com você?
A mãe insistiu dizendo que era para marcar a opção “católico”, porque não gostaria que o filho fosse mal visto e tivesse que passar por coisas semelhantes as quais já tinha passado.
O caso em acima não pode ser considerado “dupla pertença”, fenômeno comum na religiosidade brasileira, quando a pessoa é católica e, ao mesmo tempo, frequenta um centro espírita, por exemplo. O menino era mesmo umbandista. Esse ocorrido rendeu uma boa discussão com os estagiários de psicologia, e fez nascer um trabalho que foi apresentado em evento acadêmico promovido pela universidade.
Pude, então, compartilhar com os estagiários algumas reflexões sobre a violência religiosa praticada contra os adeptos de religiões de matriz afro-brasileira a partir da minha dissertação de mestrado sobre “As representações sociais da umbanda entre neopentecostais”, publicada em 2019 e do livro “Santos, orixás e demônios”, publicado em 2022.
Em primeiro lugar, sabemos que há um caráter histórico estruturante e indelével oriundo da colonização e da escravidão. Os cultos afrobrasileiros foram duramente perseguidos, mesmo após o advento da “abolição” em 1888. Proibidos por lei, alvos de batidas policiais, depredações e dura perseguição.
O proselitismo católico em terras brasileiras foi incapaz de compreender as religiosidades provenientes de África (sem querer reduzir ou simplificar). Como demonstrou o etnólogo Edison Carneiro, rapidamente a figura de Exu foi associada a imagem do diabo cristão (século XVI).
Sendo assim, o processo de demonização dos orixás nos trópicos não teve sua origem nos tempos recentes, mas alguns séculos atrás com o catolicismo. Posteriormente foi ganhando novos contornos, a partir da ascensão protestante e evangélica (pentecostal e neopentecostal) nos séculos XX e XXI.
Voltando ao período colonial, defendo que o que alguns entendem por “sincretismo” foi na verdade uma estratégia de sobrevivência. Mediante a imposição do catolicismo europeu, fica a pergunta: Como uma fé de origem africana poderia ser preservada? A astúcia do povo afrobrasileiro construiu uma artimanha perfeita: o estabelecimento de paralelos entre os santos e os orixás.
Um belo exemplo disso é a figura de São Jorge, santo cultuado pela Igreja Católica. No dia de São Jorge as igrejas dedicadas ao santo são tomadas por religiosos de matriz africana que cultuam aos orixás correspondentes Ogum (no Rio de Janeiro) e Oxóssi (na Bahia).
Refletindo sobre os dias atuais, dados do Censo do IBGE de 2010, demonstram que o percentual de umbandistas e candomblecistas declarados no Brasil era de 0,3% cada, considerando a população total. O último Censo, realizado em 2022, mostrou que esse número saltou para 1%.
Nesse sentido, o sociólogo da religião, Ricardo Mariano, nos idos dos anos 2014, apresentou argumentos que justificariam esse pequeno percentual: o medo de se autodeclarar umbandista ou candomblecista; seria então, uma estratégia de autoproteção diante das ameaças odiosas. Por isso, muitos optaram por apresentar uma outra religião, como católico ou espírita kardecista – o que também se justifica pelo fenômeno da dupla pertença. Desse modo, os números oficiais podem estar aquém da realidade.
Em contrapartida, é preciso avaliar que o crescimento notado – entre 2010 e 2022 – pode ser fruto de uma mudança social em curso. Candomblecistas e umbandistas passaram a se afirmar publicamente como ato de resistência ou sentem menos intimidados atualmente? Não tenho a resposta. Parece-me uma mudança positiva, mas que está longe do ideal de coexistência e respeito à diversidade religiosa.
Lembremo-nos que, no ano de 2025, uma mãe, em busca de ajuda psicológica para o filho, precisou dizer: Coloca aí que ele é católico!
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Referências Bibliográficas:
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Tecnoprint142, 1987.
FREITAS, Allan Felipe Santos de. As representações sociais da umbanda entre neopentecostais. 155f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.
FREITAS, Allan Felipe Santos de. Santos, orixás e demônios: as representações sociais da umbanda entre neopentecostais. São Paulo: Fonte Editorial, 2022.
MARIANO, Ricardo. Mudanças no Campo Religioso Brasileiro no Censo 2010. Debates do NER. Porto Alegre, ano 14, n. 24, p. 119-137, jul./dez. 2013.
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