Sincretismo depreciativo e intolerância religiosa

Constatei nas pesquisas de campo que realizei no segundo semestre de 2022, em pleno período eleitoral, que os cultos de libertação na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) são corpóreos. O templo é transformado em arena. Os espíritos ganham corpo, voz e expressões faciais. No palco, algumas pessoas se contorcem e medem força com os agentes da suposta libertação. A batalha espiritual é ritualizada com movimentos de corpos que se contorcem e vozes que oscilam entre gargalhadas descompassadas e gritos sinistros. A multidão assiste extasiada. O dirigente da reunião, evocando o nome de Jesus, com voz de autoridade, depois de um pouco mais de uma hora, ordena que os demônios saiam dos corpos ali prostrados. Os fiéis também combatem o que supõem serem expressões demoníacas. Num grito final, triunfal, declaram a vitória do bem sobre o mal. As pessoas retornam para os seus lugares cantando, aparentando alívio.

O exorcismo na IURD é uma teatralização em que santos e orixás são reduzidos a condição de demônios a serem combatidos. Em diversas roupagens e para diferentes propósitos, no culto da libertação iurdiano, o discurso de ódio é central.

No contexto das disputas eleitorais, o discurso de ódio é vocalizado na versão da guerra espiritual com símbolos religiosos. Discriminação, preconceito, hostilidade, demonização e intolerância religiosa são assumidos como ativos políticos. Tentativas de converter o fiel da igreja em eleitor no pleito. Identidades religiosas transpostas para gerar fidelização política-eleitoral. Em suma, disputas eleitorais são transformadas em guerra espiritual.

Psicologia Social

O fenômeno religioso interpretado a partir da psicologia social é uma investida ainda insipiente nos estudos acadêmicos no Brasil. Quando tentamos caracterizar o chamado “estado da arte” dessa temática, descobrimos poucas e espaçadas pesquisas. Investir sobre os motivos de tal lacuna já seria em si uma pesquisa complexa. O trânsito religioso recente no Brasil passa necessariamente pelo neopentecostalismo como fenômeno de massa. Na atualidade brasileira, deflagra-se uma versão da intolerância religiosa entre neopentecostais e as religiões afro-brasileiras.

Allan Felipe Santos de Freitas é psicólogo clínico na abordagem existencial humanista. Mestre e doutorando em psicologia social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ). Atua como professor universitário. Colaborador do eixo de Laicidade da Comissão Regional de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRDH-CRP-RJ). Portanto, estamos perante um autor com vasta experiência no tema.

Freitas realizou um trabalho empírico entrevistando vinte e cinco líderes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) além de participar como observador de dez cultos dessa igreja neopentecostal. Especificamente, acompanhou cultos denominados “reuniões de libertação” que são transformados em arenas de “batalhas espirituais”. O autor trata na sua pesquisa especificamente da “guerra espiritual” entre a IURD e a Umbanda.

O fenômeno religioso em questão é estudado na perspectiva psicossocial tendo por referencial a teoria das representações sociais. Vertente epistemológica que não desconsidera o senso comum. Muito pelo contrário, observa e pesquisa a vida cotidiana no seu dinamismo. Diferente das pesquisas experimentais da psicologia social epistemologicamente orientadas pelo positivismo, sugere uma abordagem que supere a dicotomia individual/social. Tão lesivo para as análises da psicologia social, o abandono da dimensão social em detrimento da individualização seria o desprezo do marco individualista em função da adesão irrestrita e passiva às ciências humanas e sociais.

Quais os pesquisadores que aplicaram a teoria das representações sociais para ler os evangélicos enquanto atores políticos? Numa formulação mais assertiva: qual a produção acadêmica na área da psicologia social no Brasil em que a teoria das representações sociais foi utilizada para pensar a relação evangélicos e moralidade? A contribuição original de Freitas para o debate tem a ver com a escolha da teoria das representações sociais para ler os evangélicos enquanto atores políticos.

Nos cultos da IURD, são utilizados regularmente símbolos e elementos típicos das religiões afro-brasileiras. Tais apropriações não representam pontos de convergências que suspendem as hostilidades da alegada “batalha espiritual”. O que ocorre de fato são ressignificações que ensejam o “processo de demonização dos orixás e de toda produção das religiões de matriz africana” (FREITAS, 2022, p. 20).

Segundo Freitas, as reuniões mais concorridas na programação semanal da IURD são os cultos da prosperidade e de libertação. A audiência aumenta exponencialmente por conta das atrações que tematizam o imediatismo da prosperidade e a libertação de encostos e demônios em sessões de exorcismo em que supostamente há o descarrego coletivo. Em ambas as reuniões temáticas, constata-se o que podemos caracterizar como “sincretismo depreciativo”.

Os elementos apropriados da Umbanda e dos cultos afro-brasileiros são tomados nos discursos embasados pela teologia da batalha espiritual. Ou seja, nos cultos da prosperidade e da libertação a IURD tenciona frontalmente com a Umbanda e com o Candomblé como se fossem expressões diabólicas. A demonização das supostas religiões inimigas, nesta perspectiva, funciona como mecanismo para validar todo discurso de ódio que funciona como retórica política eleitoral.


FREITAS, Allan Felipe Santos de. Santos, orixás e demônios: as representações sociais da umbanda entre neopentecostais. São Paulo: Fonte Editorial, 2022

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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