O Velho Testamento e a Guerra Cultural

O cristianismo da Guerra Cultural tende a criar inimigos para chamá-los de seus.

Foi propagada a falácia que os movimentos cristãos extremistas neoconservadores, que se expressam com ódio e cultivam projeto de poder para dominar Estados e consciências, se amparam e encontram legitimação no texto do VT.

Deduzem que a ultradireita direita cristã não aprecia o Novo Testamento (NT) em que Jesus é o protagonista, o tema da graça (favor imerecido) é fulcral e o amor (a si mesmo, ao próximo e a Deus) é o principal mandamento.

A combativa e raivosa ultradireita direita cristã prefere a suposta identidade do Deus irado, iracundo, zangado, vingativo, misógino, xenófobo, homofóbico, racista e armamentista do VT.

Ora, tal conclusão é fruto de desconhecimento. Em breves notas sobre o VT, conseguimos problematizar tal argumento popularizado.

Vamos lá!

O êxodo foi um processo de libertação sociopolítico. Sobre servidão e liberdade, a saída de Israel do Egito teve implicações religiosas e políticas. O Deus que se coloca ao lado dos oprimidos condena os opressores.

O que não serve pra Francisco… serve para Chico?

Deus continua ouvindo o clamor dos oprimidos, seja no idioma que for, inclusive no árabe.

Deus continua condenando os opressores, seja a nação que for, inclusive Israel sob o ímpeto do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

No correr da história, o regresso de Israel do exílio na Babilônia representou a atualização do sentido do êxodo. Mesmo em outro contexto local e temporal, o Deus revelado no VT continua inarredável com caráter libertador dos oprimidos e contestador das injustiças dos poderosos com ímpetos totalitários e colonizadores.

A figura do profeta, leitor da conjuntura sociopolítica, com coragem para denunciar os abusos de poder dos reis, juízes e religiosos. Alguns temas das denúncias proféticas: opressão social, corrupção, injustiças políticas, usura econômica, egoísmo, indiferença com os pobres (órfãos, viúvas e deficientes físicos).

Uma síntese textual deste caráter do Deus revelado na história contada pelo VT.

O verdadeiro jejum consistia em soltar as ligaduras da impiedade, desfazer as ataduras da servidão, deixar livres os oprimidos, despedaçar todo jugo, repartir o pão com o faminto, recolher em casa os pobres desabrigados, cobrir o nu e reconhecer a dignidade dos nossos semelhantes (Isaías 58. 6, 7).

Sim, o VT tem implicações políticas.

No contexto externo do povo de Israel bíblico, ênfase para o sentido de liberdade. Enquanto no contexto interno, destaque para as responsabilidades do cuidado com o outro, principalmente com os mais frágeis econômica, social e politicamente.

Sugiro aos cristãos brasileiros que reconsiderem suas práticas e discursos políticos à luz de leituras reflexivas do VT. Mesmo no VT, a teologia do domínio não faz sentido e não encontra base para legitimar a ditadura da maioria, seja tal maioria de feição econômica, racial, étnica ou religiosa.

O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), no seu ateísmo antropológico, disse que o homem criou Deus à sua própria imagem e semelhança.

Os movimentos cristãos extremistas neoconservadores projetaram as suas raivas reprimidas e ressentimentos na figura de Deus. Criam um Deus odioso. Não estamos diante de místicos que revelam a beleza do divino, mas de políticos que disputam o “céu” a tapas e porradas.

Definitivamente, a extrema direita não encontra fundamentação bíblica no VT para levar adiante o seu discurso de ódio. Neste caso, a interpretação revela mais do intérprete do que do texto.

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, professor universitário, pesquisador (pós-doc USP), cientista social e pastor

OPINIÃO
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