Autismo na Escola: uma experiência difícil

Para os pais das crianças diagnosticadas no Transtorno do Espectro Autista (TEA) o ambiente escolar é especulado pendularmente: lugar de interações sociais ou lugar em que a solidão vai se evidenciar. Entre esses dois extremos, existem múltiplas variações. Tão dolorido quanto admitir o diagnóstico é levar os filhos para o espaço da convivência.

Tratando-se de pais atípicos, nossa esperança é que na escola os nossos filhos sejam aceitos, interajam, não fiquem isolados e que consigam conversar olhando nos olhos. Isso não quer dizer que estamos nos contentando com pouco, apenas que a nossa ordem de prioridades é outra.

Pais nutrem expectativas de proporcionar aos seus filhos uma boa escola que potencialize a aquisição de saberes. Existem hierarquias socialmente construídas de conteúdos considerados importantes para que os estudantes brilhantes se desgarrem da multidão. Isso não está tacitamente publicado ou afixado no mural da escola. Contudo, o processo de distinção pode se transformar em métodos de exclusão com crueldade. Um tipo de mostruário do que nos espera na sociedade.

Na condição de professores, fizemos um esforço financeiro enorme para matricular o Luca no que considerávamos a melhor escola da região. Depois de alguns meses, fomos chamados para a primeira reunião. Queriam entender como nosso filho funcionava. Seguiram outras reuniões em que chegávamos tensos e saíamos arrasados. No auge do nosso desgaste houve a derradeira avaliação. A coordenadora pedagógica, cercada das suas professoras treinadas, fez uma sessão de tortura conosco. Primeiro mostraram os trabalhos dos colegas de turma. Depois, evidenciaram quais eram os objetivos e os métodos aplicados. Finalmente, por último, trouxeram os trabalhos do Luca para dizer que os seus traços no papel e movimentos corporais destoavam das outras crianças e dos objetivos pedagógicos esperados. Soou como um pedido velado para que procurássemos outra escola. Até então a palavra autismo não fazia parte das nossas vidas.

Lembro da confraternização no final do ano letivo nesta escola, dolorosa memória. Uma festa em que as famílias adentravam o espaço para explorar as conquistas dos seus filhos e aplaudir as apresentações de teatro, capoeira, judô, música e mais um tanto de coisas. Na demonstração de judô, devidamente paramentado, ele encontrou o meu olhar na plateia. Minha interpretação do que ele dizia com os olhos: “Pai, desculpa pelo que vai acontecer daqui a pouco!” Ele estava constrangido. O professor com o seu kimono faixa preta tirava as crianças, uma a uma, para demonstrar a arte marcial. Quando a assistente fez o gesto de trazer o Luca para o centro, o professor, sem disfarçar, fez caras e bocas para a moça deixá-lo sentado. Ele foi a exceção. O único que não lutou. Apenas ele não foi incluído.

Logo depois houve a coreografia de músicas ritmadas. Um show de luzes e figurinos. Fleches de luzes dos registros fotográficos. Iluminação das filmadoras. Quando foi a vez do Luca no palco, ele chorou de soluçar. Não cantou, não sorriu, não dançou, apenas chorou olhando fixamente para a Patrícia como quem pedia socorro.

Já estávamos indo embora quando abriram a roda de capoeira. Aquele canto nos acalmou. Nós três estávamos precisando. A turma do Luca estava no centro da roda. Coloquei ele no colo e disse que não precisava se apresentar. Só íamos assistir. Depois de um tempinho, era nítido que os capoeiristas também estavam deslocados naquele salão de classe média. Branquearam a capoeira para serem vistos e aceitos. Luca foi para o chão. Quando não esperávamos, ele estava na roda, gingando ao modo dele. O mais lindo foi quando o mestre Grilo encontrou o ritmo do corpo do Luca e alterou a cadência da música. Com o pandeiro, ritmou os atabaques para reverenciar o diferente. Deram um outro compasso para incluir o diferente.

Sou um místico. No canto negro, eu vi Deus dançando na roda no ritmo do meu filho. Deus é flexível e se dobra para gingar com quem ficou sem par. Os olhos cúmplices do mestre Grilo cheios de empatia. Dessa vez, enquanto o Luca ria, eu e Patrícia chorávamos.

Muitos anos se passaram para o Luca começar a nos contar tudo que viveu dentro daquela escola que se vendia como modelo de modernidade. Ele entrou aos 3 anos e saiu aos 6 anos de idade. Foram 3 anos em que achávamos que estávamos fazendo o melhor. No entanto, escola bem equipada nem sempre lida bem com gente.

O trauma do judô foi superado anos após. Luca e Pedro iam com imensa alegria para a Escola de Lutas Gavazza. Entre tantos benefícios, no caso do Luca, o mais fundamental: a aceitação. Claro que havia os meninos de alto rendimento que eram preparados para importantes competições de judô e Jiu-Jitsu. E quem disse que nos esportes competitivos os autistas devem se retirar para não atrapalhar as performances? Artes marciais sem filosofia viram mera apresentação para registros fotográficos de clientes de entretenimento. De forma muito respeitosa, os mestres da Gavazza ensinavam a filosofia do judô às crianças típicas tendo, eventualmente, no centro do tatame um menino atípico: gordinho, asmático, autista e com dificuldades psicomotoras. Acho que foi nesta Escola de Lutas que li a seguinte frase: “Cada dia que você não desiste, é uma vitória.”

O sistema de educação excludente é reflexo da nossa sociedade hierárquica que naturalizou as desigualdades sociais crônicas. Mesmo assim, encontramos educadores transgressores que celebram a dignidade humana. O diferencial não se nota pela utilização do letramento politicamente engajado ou pelos certificados das especializações acadêmicas. A pedra de toque é a sensibilidade. Todos que participam da comunidade escolar deveriam estar dispostos a aprender sempre e com todos. Aquisições de saberes que não caem na prova, mas aparecem frequentemente na vida. Encontramos nas escolas mestres que levamos para a vida toda.

Para você que me acompanha nesta coluna, no próximo artigo conto um pouco mais das nossas vivencias com a escola. A palavra autismo significa “para dentro de si mesmo”. Daí a comunidade escolar apresentar desafios que quando olhados de longe podem ser vistos como obstáculos. Para a família, o momento de levar a criança autista para a escola pode significar esperança de interações sociais ou ameaça de solidão intensificada.

Por fim, digo especialmente aos pais, que antes de fazer da socialização dos nossos filhos uma missão de vida, precisamos romper com o ciclo da nossa própria solidão.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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