Bruno Pereira e Dom Phillips: não foi uma aventura

Não foi uma aventura.

Foi o senso de urgência que os levou a remar e entrar na mata. Sem escolta, desarmados, pouca bagagem, leves o bastante para não afundar. Tão leves que a brisa os movia. Senso de pertencimento em que o canto acarinha a alma e os indígenas devolvem com solfejos nativos. Foram ameaçados e desdenhados, sabiam dos riscos, conheciam quem sagrava os rios, derrubava as matas, descarregava drogas e malocava armas e munições para destruição em massa.

Não foi uma aventura.

Foi coragem para denunciar ao mundo o que parecia literatura fantástica. Realismo, FUNAI raiz. Preferível cagar no mato a bater continência para quem vive em função da ascensão na hierarquia. Realismo, JORNALISMO raiz. Preferível conviver com os perigos nos igarapés a se acostumar com a segurança dos aquários nas redações de notícias plantadas. Pássaros voam ao ar livre, fora da gaiola. Peixes nadam soltos, fora do aquário.

Não foi uma aventura.

Foi amor pelos indígenas e seu território. Reverência pela história dos povos originários em que a memória não se transforma em mercadoria e a cultura não se negocia. Povos que não precisam ser salvos por agências missionárias, resgatados pelos órgãos do governo, cooptados pelas mineradoras ou indenizados pelo tráfico de armas e drogas. Amor pela biodiversidade, pelas comunidades ribeirinhas, pelos camponeses, peões…

Não foi uma aventura.

Foi missão de vida num tempo em que vidas valem tão pouco. Mas eles remaram enquanto puderam fora do radar das autoridades que se negam a ver o que acontece na Floresta Amazônica. Não foi um acidente ou um caso isolado. Estavam marcados para morrer porque estavam atrapalhando atividades ilícitas toleradas e incentivadas por quem devia combatê-las.

Não foi uma aventura.

Foi o sonho de preservar a natureza através de gestos simples, de pessoas comuns, em lugares aparentemente insignificantes. Mudar o mundo com atitudes miúdas numa mata densa. Precisaremos dizer aos nossos filhos que não esperamos deles o brilho dos garimpos predadores, mas o canto livre do Bruno Pereira e a integridade do Dom Phillips ao empunhar a caneta e o caderno.

Não foi uma aventura.

Foi a utopia de tocar o universo atuando no microcosmo. Pessoas singulares, desencaixadas do sistema econômico na sua estúpida corrida ao ouro em que o lucro dita as regras. Teimosos o suficiente para acreditar que o universo conspira a favor das matas, dos rios, dos animais, dos mares, enfim, da harmonia para além do nosso olhar e sentir. Pessoas como Bruno e Dom vivem desassossegadas porque reparam que o mundo está girando ao contrário e a possibilidade de um colapso planetário é real.

Não foi uma aventura.

Foi o canto ligeiro regado de saudade que nos convida a lutar, apesar da desesperança que nos acomete quando olhamos os predadores em funções de governo. O canto universal em que o tema é a vida, apesar da sombra da morte. Bruno e Dom não foram paralisados pelo medo, mas movidos pela sonoridade da mata profunda, com a sua gente encantada, com o Espírito pairando sobre as águas gestando a natureza.

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Foto: Ueslei Marcelino / Reuters

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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