CANTIGA DO EXÍLIO

Sentados na beira dos rios da Babilônia, chorávamos (Salmo 137)

 

Em muitos momentos da vida, em muitos lugares, assentamo-nos e choramos. O motivo? Pois é, o motivo não é muito claro. Vamos tentar resumir essa realidade confusa e difusa com uma palavrinha: saudade. Trata-se daquela vontade grande de voltar para um lugar ou um tempo que não existem mais. Olhar vago e sentimentos fundos. Nó na garganta e lágrimas nos olhos. Parece que as ilusões foram esmagadas; daí, a necessidade de recuar para, um dia, quem sabe, recomeçar. Não foram poucos os que cantaram, cada um ao seu modo, a cantiga do exílio.

 

Gonçalves Dias escreveu em 1843 o poema Canção do Exílio. Ele estava em Portugal, mais precisamente na Universidade de Coimbra, cursando Direito. E extravasou através dos versos a sua saudade.

 

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida, mais amores…

 

Com a lira em outra afinação, apontando seu canto para outro canto, Murilo Mendes compôs a sua Canção do Exílio. Uma paródia da ode de Gonçalves Dias com a intenção de destacar a realidade de uma colonização cultural que fazia os nativos se sentirem exilados em sua própria terra. O exílio não é uma mera distância geográfica. Ele é, também, a distância de nós mesmos, o isolamento das nossas referências.

 

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam  gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista
Os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações (…)
Nossas flores são mais bonitas,
nossas frutas, mais gostosas, mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai, quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

 

O que caracteriza o exilado é o futuro incerto, o presente insatisfatório e um passado que evoca muitas saudades.

 

No final da tarde, à margem dos rios, eles lamentam. Olhares perdidos buscam entender o porquê de estarem naquela terra estranha, longe de casa. São muitas as recordações; não há música, e eles estão chorando! Rios que trazem recordações, rios que levam saudades! Estáticos e nostálgicos.

 

Para muitos de nós, enquanto choramos, as lágrimas são reais; mas o motivo delas, nem sempre! A dor é sentida – o motivo, nem sempre! A insatisfação é conhecida, mas o motivo, nem sempre! O “desconforto” é grande, mas como chegamos a essa situação? Assim como por vezes a saudade é indefinida, os motivos que nos levaram para a zona do “desconforto” também o são.

 

Vidas secas, nostálgicas do divino. Focaram o olhar nos babilônios, elegendo-os como os grandes culpados por suas lágrimas. Não sabiam que, para onde quer que fossem, levariam consigo o exílio. Seriam exilados pelo ódio e pela amargura. O exílio estava dentro deles, e não fora.

 

Ficar olhando assim para as águas do rio, como se elas fossem mudar seu fluxo e nos levar para o passado, parece algo tão natural, mas é o tipo de nostalgia paralisante. Um olhar que enfeia o presente, pois cala a canção e a poesia.

 

Mesmo no exílio, podemos fazer canções que falem do amor, que falem de encontros, que falem de certezas que estavam perdidas; que falem, finalmente, que o encontro pelo qual ansiávamos vai acontecer com certeza. O contexto no qual Chico Buarque cantou a sua Canção do exílio (Sabiá) foi bem diferente do contexto em que Gonçalves Dias e Murilo Mendes fizeram as suas. O que me chama atenção nessa letra que foi musicada por Tom Jobim é a certeza do retorno – a certeza do reencontro, a convicção de que o exílio tem data para terminar.

 

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá (…)

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Não sou mais triste
E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar
E a solidão vai se acabar

 

A poesia de Cacaso nas décadas de 1960 e 1970 não foi criada no exílio. Ficou conhecida como poesia marginal. Vanguardismo de uma juventude que não queria se pronunciar artística e existencialmente dentro das convenções. Dessa forma, a canção do exílio ganhou uma versão que remetia ao movimento hippie: um modo artesanal de versejar.

 

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o tico-tico

Enquanto isso o sabiá

Vive comendo o meu fubá

(…)

Minha terra tem Palmares

Memória cala-te já.

Peço licença poética

Belém capital Pará

Bem, meus prezados senhores

Dado o avançado da hora

Errata e efeitos do vinho

O poeta sai de fininho.

 

Caso descubramos que foi a nossa arrogância que nos levou para o exílio, entendamos também que será nossa humildade que nos tirará dessa zona cinzenta. É tempo de apanhar as liras que estavam suspensas, acariciá-las e tanger suas cordas de tal forma que surjam as canções. Pode não ser fácil, mas é possível cantar e dançar mesmo “nessa terra estrangeira”. O olhar nostálgico no fim da tarde faz com que peguemos a lira e produzamos o belo. Que a esperança chegue num fim de tarde e decrete o fim da nossa nostalgia de Deus ou da vida.

 

Antes de sair de fininho, preciso dizer que no início desta conversa eu estava triste e perplexo olhando vagamente para qualquer coisa que remetesse à distância. Finalizando, as coisas continuam do mesmo modo, ainda estou triste. Contudo, a lembrança me trouxe um raminho de esperança. É coisa pouca, mas, o suficiente para superar a perplexidade e recomeçar mais uma vez a partir de onde estou.

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Fotografia: Samuel Carvalho/Flickr

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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