O que leva um pai a denunciar uma escola após sua filha chegar em casa com o desenho de um orixá? O que leva a PM entrar armada nessa escola com uma metralhadora em horário escolar para interrogar os funcionários? O que leva esse mesmo pai a rasgar todas as atividades que fazem referência a cultura e religiões de matriz africana expostas na parede desta escola? O que o professor ou professora poderia fazer diante de tal situação? Quais são os contornos e limites da laicidade que se efetivam em nosso país?
Essas reflexões me surgiram diante de um fato ocorrido no dia 12 de novembro de 2025 na EMEI Antônio Bento, localizada na zona oeste de São Paulo. Na ocasião, quatro policiais entraram armados na escola após a denúncia do pai de uma das estudantes que havia desenhado a orixá Iansã no âmbito de uma atividade pedagógica da escola, baseada no livro “Ciranda de Aruanda” da escritora Lia Olivina. A Atividade fazia parte do currículo obrigatório da Rede Municipal, que inclui conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas conforme estabelecido pelas leis 10.639/03 e 11.645/08. A diretora da escola relatou ter sido coagida por cerca de 20 minutos durante o episódio e, dias depois, precisou solicitar licença médica, afirmando sentir-se ameaçada após a repercussão do caso.
Diante dos desdobramentos do episódio, me deparei com uma dualidade de opiniões sobre o assunto: de um lado, surgiram discursos afirmando que, por ser o Brasil um Estado laico, nenhuma referência religiosa deveria ser mobilizada no ambiente escolar ou que nenhum “ensinamento” religioso deveria ser feito nas escolas. Por outro lado, manifestaram-se pessoas que compreenderam a ação policial realizada enquanto um gesto de intolerância religiosa, que no caso do preconceito direcionado a religiões afro-brasileiras, pode ser configurado também como racismo religioso.
Para responder às perguntas iniciais e refletir sobre essas opiniões, precisamos ponderar de forma muito honesta as dimensões históricas da formação da laicidade no Brasil e da convivência entre as diferentes religiões em território brasileiro, além de compreender a maneira como os mecanismos de poder, perseguição e violência têm sido atualizados e perpetuados ao longo do tempo, principalmente em relação às religiões de matriz africana, em particular ao candomblé e a umbanda.
A Constituição de 1891 instituiu a separação oficial entre Igreja e Estado, destituindo a igreja católica como religião oficial. Desde então, o Brasil – pelo menos no papel – se constitui enquanto um estado laico, garantindo a liberdade de culto a todas as religiões em território nacional. Importante relembrar que, a princípio, essa medida visava evitar questões com imigrantes protestantes que estavam se fixando em território brasileiro a partir do século XIX.
A história, porém, revela que a laicidade brasileira não foi traduzida em igualdade religiosa. Mesmo com a garantia constitucional de liberdade de culto, o Estado brasileiro elaborou e aplicou mecanismos de controle e repressão especificamente direcionados às religiões de matriz africana, enquadrando seus praticantes em acusações de exercício ilegal da medicina, curandeirismo e, pejorativamente, como feitores de “magia negra”. Portanto, no início do período republicano tornaram-se comuns as invasões a terreiros, apreensão de objetos sagrados e a perseguição a práticas culturais negras em diferentes localidades do país. Trata-se de um processo repressivo e violento que por muitos anos, buscou disciplinar e controlar saberes considerados “primitivos” e “inferiores” em consonância com instituições que mantinham-se funcionando a partir de uma moralidade cristã. Nesse sentido, tanto em sua versão católica, quanto protestante (grupo que mesmo depois de terem conquistado sua liberdade de culto, permaneceram perseguindo outras religiões), esse cristianismo contribuiu para a construção de aparatos jurídicos e morais que demonizavam as religiões e práticas afro-brasileiras.
Apesar da grande transformação ocorrida no campo religioso brasileiro nos últimos anos, o candomblé e a umbanda continuam sendo alvos de perseguição e violência no Brasil. Não são poucas as notícias que revelam essa realidade e mostram terreiros sendo invadidos e destruídos, ou pessoas sendo violentadas (física ou simbolicamente) por conta de sua crença religiosa. Se ampliarmos um pouco mais a discussão, percebemos que não apenas as religiões, mas também diversas práticas culturais afro-brasileiras foram e ainda são, alvos desse processo de violência e criminalização. O carnaval, a capoeira e o samba, são exemplos emblemáticos dessa repressão.
Será que se o desenho feito pela estudante fosse de uma divindade da mitologia grega e nórdica, como Zeus e Thor, por exemplo, a reação desse pai teria sido a mesma? Os policiais militares teriam sido acionados e entrado armados nessa escola? Ou então, são as sinagogas, templos budistas ou mesquitas vilipendiadas da mesma forma que os terreiros são no Brasil? Isso me lembra um episódio recente ocorrido na cidade onde moro, Vitória/ES. Dois políticos acusaram o Palácio Anchieta de promover “doutrinação religiosa” por meio da exposição Línguas africanas que fazem o Brasil, que investiga a influência das presenças africanas no vocabulário e na pronúncia do português falado no Brasil, além de trazer um olhar para essa realidade no estado do Espírito Santo a partir de artistas capixabas. Com a chamada “flagramos movimento Exu no Palácio Anchieta”, os parlamentares publicaram nas redes sociais, um vídeo com imagens da exposição e trechos das falas dos educadores responsáveis pela mediação. A pergunta que se impõe é: se a exposição tratasse de referências culturais ou religiosas europeias ou norte-americanas, em outras palavras, se a exposição evocasse elementos do cristianismo, ela seria igualmente acusada de doutrinação?
Portanto, o que está diante de nós, é que tais perseguições (materiais, físicas ou simbólicas), não se configuram apenas como uma espécie de intolerância religiosa, mas possuem um atravessamento racial, ou seja, são mobilizadas pelo racismo, conforme aponta o Babalorixá, pesquisador e escritor Sidnei Nogueira: “Alguns acreditam que a melhor expressão seja intolerância religiosa. Todavia, no caso das violências praticadas contra as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear desse tipo de violência contra as CTTro (Comunidades Tradicionais de Terreiro) é o racismo” (NOGUEIRA, 2020, p. 44).
É esse racismo religioso que classifica as entidades de culto afro-religiosas de demoníacas. Portanto, é preciso apontar que essa violência vem em grande parte de igrejas e lideranças evangélicas que constroem sua teologia a partir de uma superioridade moral, teológica e cultural que promove uma inferiorização constante dos conteúdos culturais e religiosos ligados às heranças negras brasileiras. O que encontramos muitas vezes são discursos de ódio disfarçados de “batalha espiritual”.
A escola, compreendida também enquanto um espaço de formação humana, não deveria ser atacada por promover a valorização e o respeito à diversidade cultural e de crença. Além de estar respaldada pelas leis 10.639/03 e 11.645/08 que tornam obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nos currículos oficiais das redes de ensino – que já foram citadas aqui – a própria BNCC possui uma área do conhecimento – Ensino Religioso – baseado na laicidade do estado e em uma abordagem não confessional, que visa a promoção do respeito à diversidade religiosa e a liberdade individual, debatendo e se posicionando frente a discursos e práticas de preconceito religioso. Portanto, baseia-se em uma abordagem não proselitista, mas que visa o conhecimento do fenômeno religioso como parte da experiência humana, da história e da cultura. Quanto a sua efetiva aplicabilidade em território nacional, podemos abordar de forma mais ampliada em outro texto.
Por ora, nos cabe refletir sobre o que está por trás das violências e perseguições às religiões de matriz africana. Como afirma o filósofo Wanderson Flor do Nascimento (2017), nomear essas práticas como racismo religioso, é uma forma de confrontar a mentalidade racista que segue permeando a sociedade brasileira – mentalidade que, acrescento, ainda se faz presente também em muitas de nossas igrejas.
Como contraponto ao episódio ocorrido em Vitória, mencionado anteriormente, a comunidade batista a qual faço parte promoveu uma visita com os adolescentes e jovens da igreja à exposição. Realizamos uma visita guiada, ouvindo, aprendendo e reconhecendo a diversidade religiosa e cultural que constitui o Brasil, com respeito e humildade. Portanto, é preciso reconhecer que precisamos transformar nossas próprias práticas sociais e comunidades religiosas em instrumentos de libertação, dignidade e respeito.
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Referências bibliográficas
ALVES, Luiz Gustavo. “Liberte Nosso Sagrado”: as disputas de uma reparação histórica. Dissertação (Mestrado em História. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2021.
ANGÉLICA, Joana. Diretora de escola alvo de PM por orixá em aula pede licença médica e diz que foi coagida após entrada dos policiais. Notícia Preta, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2025. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/diretora-escola-licenca-medica-apos-pm-orixa-em-aula/. Acesso em: 20 de novembro de 2025.
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, Brasília-DF, v. 6, n. 2 (Especial), novembro de 2017.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Pólen, 2020.