Cotidianos e a Cor do Invisível em Quintanares

Comecei o ano de 2021 lendo as primeiras obras publicadas de Mario Quintana: A rua dos Cataventos (1940), Canções (1946) e Sapatos floridos (1948). O poeta nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, no ano de 1906. Essas datas e paisagens nos dão uma falsa impressão de distância. O poeta morreu em 1994, enquanto a sua poesia fertiliza nossa imaginação nas primeiras horas do novo ano.

A primeira decisão difícil: ser ou não ser cerimonioso com o papel em que está impressa a prosa poética do Quintana? Sendo mais específico, escrevo no livro, grifo com lápis de cor os versos preferidos?

Olhando a foto do autor, compreendo a mensagem: o livro é imaterial. Não confundir a brochura com a obra literária. Não devo tratar a minha biblioteca particular como se fosse um patrimônio que deixarei para os meus filhos. Para conversar com Quintana preciso me desapegar do material com potencial de venda para mergulhar nas ideias atemporais.

Quintana pisca os olhos e libera: escreve, borra, pinta e desenha porque é um livro! Não o trate como uma relíquia de cristal posta na cristaleira apenas para ser vista, admirada, cobiçada ou elogiada. Eu quero uma poesia pessoal prosaica e não a poesia deixada abandonada na cristaleira com ares de raridade.

A vida é para ser vivida. Pinta, borda, borra, escreve, apaga, desenha, dobra, rasga, cola… Página virada é vida vivida. Página em branco, por favor, sejamos criativos!

Minha caneca de café de todos os dias é mais representativa do que a taça de cristal que deixo no alto fora do alcance das crianças. Cerimonioso com o artefato caro, descubro que o objeto não desfruta dos meus afetos, apenas dos meus cuidados. Quanto a minha caneca com as suas avarias…

Seja na Canção de bar (p. 38), Canção da janela aberta (p. 50) ou Canção do amor imprevisto (p. 60), o fazer poético não é propriamente o que se escreve ou se descreve. A poesia está no olhar. A sensibilidade para perceber as sutilizas do cotidiano. Vê com poesia antecede o trabalho manual da escrita.

Viva a vida livre da justa forma. Poesia na forma é tão óbvia quanto vida na forma.

Vê com poesia é viver falando sozinho enquanto caminha na praça da pequena cidade ou na mesa no fundo do bar. A caninha pode ser pura, a poesia, não (p. 39). O poeta pode ficar só, solitário, não. Habitado por mundos e afetado por pessoas. A poesia é uma maneira, necessária, disfarçada de suspirar… (p. 84).

Não é simples ser simples.

A escrita do Quintana é de rara sofisticação porque é simples. No poema Sinais dos tempos (p. 99), ele diz que o ambiente religioso busca promover com técnicas o sobrenatural. Não é possível ser simples quando nos deixamos fascinar pelo espetacular e perdemos a capacidade de contemplar o cotidiano com olhos poéticos. No mundo da técnica, o ser simples é considerado heresia. “Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que poesia é truque […]” (p. 87).

Por causa dos ilusionistas é que hoje em dia muita gente acredita que culto é truque.

E por falar em técnica, truque e religião, pensemos no exegeta. Para Quintana, o poema é o poema. “O que quer dizer esse poema?” (p. 117). Os que se arriscam para extrair os sentidos últimos e absolutos dos poemas deveriam primar pela simplicidade e acreditar no poeta. A pretensão de interpretar poemas sutis a fim de transformá-los em textos objetivos diz mais do exegeta do que do poeta.

Que o vento ventando nos leve, leves como a jangada, para novas praias. Que o vento ventando nos abrande tanto que recuperemos a capacidade de notar “jogos de luz dançando na folhagem!” (p. 189). Sim, com o passar das horas quotidianas, tanto a luz do dia quanto a luz da noite oscilam, e só no modo simples podemos perceber.

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Mario Quintana não era dado a escrever sobre as estruturas sociais-políticas-econômicas. Preferia olhar para o prosaico. Viveu a vida adulta em Porto Alegre. Andarilho que observava tanto o pitoresco das ladeiras da cidade, quanto o habitual nas mesas no fundo do bar. O quintanares é infância na cidade de Alegrete (RS).

O poeta recita a poesia no lento. Daí nossa impressão de um idoso vagaroso, quase lerdo, escorado na bengala para o seu fazer poético. Leitores apressados, percebam que não estamos discutindo uma questão de ritmo, mas de paisagem. O lento não é necessariamente o poeta, mas a paisagem que ele observa e descreve.

Relata os acontecimentos do dia a dia sem fazer força para transformá-los em eventos especiais. O comum pode ser belo sem precisar ser excepcional. O elogio à simplicidade tem a ver com a disposição de ser comum sem ser vulgar. Em Quintana, a sofisticação está no modo simples com que vê e diz as coisas.

quintanares é saudade da infância na cidadezinha. Perceba que em Quintana infância não se restringe a faixa etária; cidadezinha não se define por tamanho espacial; e interior não se determina a partir de marcos geográficos. Infância, cidadezinha e interior assumem um sentido único: saudade. “O que fazem as coisas pararem no tempo é a saudade.” (p. 84).

Por diversos modos, Quintana se afasta de todas as tentativas de definir a poesia. A propósito, essa era uma ideia fixa dele: poesia não se define. Seja a dele ou de qualquer outro. A poesia não se decifra porque não guarda um segredo oculto. Os sentidos últimos que precisam ser procurados no texto poético têm a ver com a criatividade do intérprete, bem mais do que com as intenções do poeta. Quintana fala da sua poesia como o pintor borra o seu pincel na paleta de cores. A arte final fica parecida com o esboço. O esboço é o quadro incompleto, não obstante, emoldurado assim mesmo. Lembrar que preguiça em Quintana não é falta de interesse ou empenho. Preguiça é método.

“Duas coisas ativam minha poesia: a poluição sonora das grandes cidades e o silêncio das cidades pequenas” (p. 108). O pintor encontra a cor na mistura e dispõe a imagem fazendo uso do contraste entre figura e fundo. O poeta em questão acha a sua poesia no contraste de ares entre Alegrete (RS) e Porto Alegre (RS). Essas cidades são representativas e não exclusivas. A vida vivida no lento no interior e agitada no litoral. Claro que são idealizações que alimentam a memória. Saudade não só como produto da memória, mas como exercício da criatividade. O ancião fala do menino real, assim como do menino idealizado. Seria ofensivo perguntar o que em Quintana é história e o que é ficção. Ora, basta-nos saber que é tudo poesia.

Seguindo esse fio de pensamento, no quintanares não fica nítida a fronteira entre poesia e prosa. É tudo poesia. Ele só consegue versar em prosa livre. Intencionalmente, transgressor, torna a poesia uma “despretensiosa” prosa. É tudo prosa. O tipo de fala mais apropriada para ser sussurrada ao pé do ouvido do que gritada nos palcos. O ritmo de Quintana é risonho. Aliás, sua simplicidade não rima com sobriedade.

Assim como é perda de tempo tentar interpretar as poesias supondo que guardam sentidos ocultos, também é desnecessário tentar decifrar o poeta através de pistas textuais. Até porque “quem nunca se contradiz deve estar mentindo” (p. 132). Quintana se contradiz frequentemente, talvez esteja tentando falar a verdade. Mas como podemos saber? Melhor deixar como está: uma obra em esboço, mas não obstante, na moldura como se estivesse finalizada.

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Vivendo recluso em plena pandemia de covid-19, resolvi ler todos os livros de Mario Quintana ao alcance da mão. Minha expectativa era deliciar-me com um texto ameno, simples, em que a prosa poética acontece em textos curtos. Mas à medida que me distanciava das margens e nadava para as águas profundas, senti falta de acenos situados em terra firme. Parecia que o poeta viveu indiferente à conturbada segunda metade do século XX. Tantos escritores repercutiram nos seus textos a contradição dos avanços técnicos-científicos-econômicos e a decadência civilizatória-humanitária-política. Não estou aqui incorrendo na confissão de que minhas expectativas foram frustradas uma vez que Quintana não bancou ao historiador, filósofo, sociológico ou qualquer outro tipo de analista especializado. Eu senti falta do poeta falando de dores e esperanças num mundo ameaçado pela corrida atômica e num Brasil em que a democracia foi interrompida. Como ficar alheio a eventos tão importantes?

Ficou parecendo que o cotidiano do qual o poeta se ocupava era restrito ao âmbito individual. Como a privilegiar o sujeito em detrimento às estruturas sociais, econômicas e políticas. Poesia do cotidiano intimista baseada na memória afetiva.

Em texto anterior em que descrevi o meu encantamento com a descoberta da prosa poética de Quintana, cheguei a usar o termo “poesia atemporal”. Vejam vocês, como se isso pudesse existir. Aquele banquinho vazio na praça da cidadezinha do interior tem história e geografia. Sim, a memória o ressignifica e o coloca como signo imaterial. Contudo, o banco tem lugar no tempo, por mais que queiramos desincorporá-lo.

Depois que ultrapassei, sei lá, o sétimo ou oitavo livro do Quintana, ganhei coragem para conversar com o autor. Não como inquisidor, mas como um interlocutor interessado e respeitoso.

– Vem cá, mesmo as poesias intimistas merecem o mínimo de contexto. Por que ignorou a situação do país e do mundo enquanto escrevia?

Perceba que a minha demanda tem a ver com a situação na qual estamos imersos. A maior crise sanitária da história do Brasil, milhares de mortos, índices alarmantes de desemprego, desindustrialização, aparente descontrole da violência (em casa, no campo e na cidade), polarizações raivosas… Fiquei imaginando Quintana escrevendo suas crônicas no Brasil no ano de 2021. Nessa crise humanitária é possível privilegiar o cotidiano do indivíduo e calar sobre o contexto no qual ele/ela se insere?

Confesso, convivendo tão de perto com a poesia de Quintana fui ficando impaciente. Meu desconforto não teve a ver com os temas que ele desenvolveu. Muito pelo contrário, o seguir com gosto nas suas andanças prosaicas. Meu descontentamento consistiu nos temas que ele deliberadamente escolheu silenciar. Como pôde não dizer nada sobre isso? Como pôde dizer tão pouco sobre aquilo? Eu não estou exigindo do poeta uma posição política partidária no Brasil ou a declaração de preferência de lado na Guerra Fria. Apenas pedindo um pouco mais de alma num mundo tão desumanizado. Que o canto poético pudesse expressar minimante o sofrer e as alegrias de um povo, não apenas de indivíduos ensimesmados.

Compartilho esses devaneios não na condição de crítico literário. São apenas reações de um leitor num primeiro encontro com o autor. A minha experiência com a poesia de Quintana tornou-se mais madura quando me deparei com um poema que ele concebeu depois dos seus oitenta anos. Um tipo de interpretação da sua própria obra. A atitude do autor frente ao seu tempo ficou mais clara para mim. Digo isso não com a arrogância de um crítico prestes a julgar as opções do poeta. Meu empenho é mais modesto, bem mais modesto. Foi bom “ouvir” do próprio Quintana o reconhecimento do seu estilo afastado da realidade histórica. Tal silêncio sobre o cotidiano histórico-cultural-social-político foi intencional e não inconsciente. Logo, minhas inferências e percepções não estavam de todas erradas.

Em seu poema intitulado “Dedicatória”, Quintana, em um dos seus últimos livros, descreve a sua poesia como palavras cotidianas como o pão de cada dia. O leitor do jornal diário haveria de descobrir que a única novidade com a qual se depararia naquela edição seria a poesia. Na crônica policial-social-política, o leitor constataria mais do mesmo. Quintana distingue o cotidiano de João e Maria, para quem escrevia, do cotidiano policial-social-político, sobre o que preferia calar.

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites?
Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond?
Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia.
Eu escrevo para o João Cara de Pão.
Para você, que está com este jornal na mão…
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia,
O resto não passa de crônica policial-social-política.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é crítica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são cotidianas como o
pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
na concha da mão. 
[1]

A escolha do escritor é consciente e, como leitor, não assumo o papel de sensor ou crítico literário. Na verdade, fiquei aliviado ao saber que foi uma opção e não um lapso do autor.  Quintana confirmou as minhas impressões quando definiu a sua poesia como expressão do cotidiano íntimo e apartada do cotidiano social. Ele pouco se refere às estruturas, lida com questões que têm a ver com as subjetividades íntimas do sujeito. Contudo, o fato de sentir falta da dimensão comunitária-política-social-humanitária fala ao meu respeito. Não consigo conceber uma experiência mística (seja pela via da arte ou da religião) que não transborde na convivência coletiva. Em termos espirituais, não faria sentido para mim a experiência com Jesus glorificado separada da experiência com Jesus encarnado.

Continuo querendo mais da poesia de Quintana. As minhas conclusões sobre o silêncio dele não desmerecem nem desqualificam o Quintanares. Minhas descobertas sobre a natureza da poesia de Quintana levaram-me a uma transição entre o fogo da paixão e a serenidade do amor. Enquanto a paixão queima abanada pelas idealizações, o amor se materializa no cotidiano, apesar de…

Sem escapismos, justificativas ou teorizações, Quintana se autodefine:

Não sou mais que um poeta lírico,

Nada sei do vasto mundo…[2]


[1] QUINTNA, Mario. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 36.

[2] Ibid, p. 93.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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