Cozinha Solidária no Chapéu Mangueira: iniciativa do Chef Carlos Fontes, o Nego Breu
Elevo os meus olhos para os montes, de onde me virá o socorro?
A insegurança alimentar nas ruas da zona sul da cidade maravilhosa é um triste contraste. Por um lado, a cidade que sorri para os turistas, enquanto por outro, a cidade que invisibiliza pessoas em situação de rua. O projeto @chapeudochefe é uma iniciativa de Cozinha Solidária liderada pelo Chef Carlos Fontes (53 anos), o Nego Breu. Nesse caso, o socorro vem do alto do morro Chapéu Mangueira. Distribuição de quentinhas para pessoas em situação de rua nos bairros do Leme, Copacabana e Centro da Cidade.
Toda semana são distribuídas centenas de quentinhas de alimentos para desabrigados. O milagre da multiplicação na sua versão carioca: a favela se organiza para prover alimento para quem perambula errante pelas ruas mais famosas do Rio de Janeiro. A generosidade de um mobiliza outros para compartilhar o pão, o peixe, o tempero e o tempo. A equipe da Cozinha Solidária sabe bem o que é dor da fome.
Nego Breu nasceu e foi criado no Chapéu Mangueira. Desfrutou da Praia do Leme como seu quintal. Aprendeu cedo que ser negro, pobre e favelado o colocava na situação de suspeita quando descia a ladeira. Quando foi para o serviço militar aos 18 anos, experimentou a farda como escudo. Quando menino, ficava olhando a mãe cozinhar e sabia que daquela atividade dependia o sustento da casa. Sua mãe era doméstica e às vezes o levava para a casa em que trabalhava. Quando saiu do Exército, três opções lhe foram apresentadas: entrar por concurso na corporação da Polícia Militar (PM), entrar no tráfico de drogas ou assumir a carreira de Chef de Cozinha.
Ser policial e morador de uma favela não lhe pareceu ideia prudente. Tornar-se um soldado do tráfico de drogas sendo um dependente químico lhe pareceu uma loucura maior do que a primeira alternativa. Por exclusão, agarrou a terceira opção. Apareceu a chance de trabalhar como ajudante de cozinheiro numa plataforma da Petrobrás. No pouco tempo em terra firme, ele ficava mareado e vencia a tontura da vida cheirando cocaína. Segundo o Nego Breu, chegou ao ponto de comer pó. Foi difícil viver confinado na cozinha de uma plataforma em alto mar por dias, mas complicado mesmo era viver. Afirmou-se em pouco tempo como talentoso chefe versado na culinária italiana e francesa. Contudo, estava sucumbindo no uso crescente das drogas.
Não acompanhou de perto a transição do filho. Quando deu por si, o menino já era um adulto, havia pulado a fase da juventude. Os turnos do filho em nada fazia lembrar das escalas de serviço do pai. O menino que já se sentia “sujeito homem” tornou-se soldado do tráfico antes de completar a idade para alistamento militar. O pai conhecia o pessoal da boca na condição de cliente assíduo, passou a frequentar a boca na tentativa de resgatar o filho. Não conseguiu. O filho do Negro Breu não sabia cozinhar e entrou para a estatística dos mortos na guerra das drogas que persiste na Cidade do Rio de Janeiro: jovem, negro e favelado encontrado morto com drogas e arma na cena do confronto.
Negro Breu descobriu com essa perda que não bastava fazer da cozinha o seu lugar seguro enquanto tantos estavam vulneráveis. Mas atento ao que acontecia ao seu entorno teve uma visão: nós estamos num vale de ossos secos e a maneira de trazer vida a essas pessoas que perambulam como zumbis pelas ruas do Centro e de Copacabana é lhes oferecer comida. Cada refeição, uma nova esperança. E assim nasceu o projeto Cozinha Solidária, Chapéu do Chefe.
A dor pela perda do filho, a dor ao internar-se na casa de recuperação reconhecendo que estava doente e não tinha forças para sair do mundo das drogas sozinho e, por fim, a dor ao reconhecer na multidão faminta que a comida importava, mas não mais do que o afeto que humaniza. Quem desce o morro para dar comida no asfalto está dizendo que se importa.
Cozinhar ele sabia, a sensibilidade estava aflorada pela dor, mas como prover os recursos para oferecer centenas de quentinhas todas as semanas? Como disse o mestre Djavan: “sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar / Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar…”
Certamente o poeta das Alagoas vai perdoar essa apropriação dos seus versos. O fato é que o Chef Carlos Fontes só tinha panelas vazias, além do seu talento.
O Nego Breu, como no milagre da multiplicação dos pães, entregou tudo o que tinha, ainda que o seu tudo era insuficiente para alimentar a multidão. Em plena Pandemia de Covid-19, constatou que o seu gesto sensibilizou pessoas e empresas. Nascia a Cozinha Solidária no Chapéu Mangueira e Babilônia com doações diversas. Chegavam aos Vales de Ossos Secos no momento mais crítico do distanciamento social imposto pela pandemia quando as ruas nos bairros do Leme, Copacabana e Centro da Cidade estavam desertas. Pessoas em situação de rua amontoadas nas calçadas sem saber o que significava distanciamento social foram visitadas e alimentadas. Dignificadas e humanizadas. O milagre aconteceu.
Conversei com o Nego Breu na véspera do show da Madonna no Chapéu Mangueira. O contraste se evidenciou fortemente. Estávamos a poucos metros da Praia do Leme e pertinho do Hotel Copacabana Palace, onde a diva estava hospedada. Multidão aglomerada esperando modestamente um aceno da estrela pop pela janela. Concordo e digo sempre aos meus alunos que a vocação do Rio de Janeiro passa necessariamente pela Economia Criativa. Que sobretudo os jovens despertem para as oportunidades desse mercado de trabalho promissor. Vamos receber bem os turistas para que voltem e façam marketing orgânico das nossas praias e encantos.
Contudo, que os beneficiários diretos da Economia Criativa não entorpeçam tanto a ponto de invisibilizar nossas hordas de miseráveis famintos. A Cozinha Solidária liderada pelo Chef Nego Breu lembra-nos que não só de Economia Criativa vive a cidade, mas de todo arroz e feijão que provêm da solidariedade de pessoas comuns.