Quem já tocou o amor pelo sabor do gesto?
(…). Esquece o que eu não fiz.
Alex Beaupain / versão: Zélia Duncan
O gesto comum do repartir o pão. Algo tão cotidiano passa a ter um sentido simbólico fundamental: doar-se, reconhecer a dignidade de quem está à mesa e servi-lo.
Este gesto comum foi transformado em ritual religioso para aguçar a memória. Originalmente, Jesus falou do compromisso que devemos ter com as pessoas. A dignidade humana simbolizada pela partilha do pão comum.
Nas igrejas, existem robustas discussões sobre a quem é devido repartir o pão. Originalmente, em momento algum Jesus restringiu o gesto aos ambientes eclesiásticos frequentado por crentes.
À mesa o tema da conversa entre os discípulos versava sobre quem era o maior. A síntese do mestre foi desconcertante: o maior não é quem está sentado em um bom lugar à mesa na expectativa de ser servido, mas, é justamente quem está em pé servindo. Disse o mestre:
– Entre vós, eu sou o que serve.
O pão comum é sagrado porque é para comer e não ser transformado em substância cênica no culto.
O símbolo da missão para os seguidores de Jesus é um pão comum repartido e compartilhado, o que passa disso é performance cênica religiosa.
Eduardo Galeano, através de um conto curto, fala da sensibilidade que ajuda a perceber as sombras. Era noite de Natal.
O responsável por um hospital infantil estava arrumando as coisas antes de correr para casa para celebrar com a família a noite de Natal.
Pelos corredores e salas que percorria sentia que alguém o seguia. Passos. Ouvia os fogos de artifício lá fora e naquele ambiente seguro, ouvia passos.
Deparou-se com um menino no corredor com olhos assustados e tristes.
Sussurrou o menino:
– Diga para alguém que eu estou aqui.
O partir do pão adquire múltiplos sentidos nas sociedades sob os signos da produtividade, acúmulo, venda e lucro.
Como faço geralmente toda sexta-feira pela manhã, fui a feira. Faço com especial prazer pelos cheiros, sabores, visuais e interações humanas. A feira é lugar de risos e chorinho de caldo-de cana.
Atrás do caminhão do peixe uma figura do bairro que vive na praça, geralmente bêbado, conseguiu ganhar do rapaz que faz os cortes dos peixes um generoso pedaço da carcaça.
Aquelas partes que não são postas nas prateleiras do balcão da frente. Animado, o bêbado, às 9h da manhã, assistia ao moço separar postas e filés dos restos.
Em algumas culturas o que fora desprezado pelo peixeiro e entregue ao bêbado da praça são consideradas iguarias, as partes mais caras do peixe.
O critério da precificação não segue necessariamente ao valor nutricional.
Há quem adore roer a cabeça do peixe dizendo que contém raros nutrientes capazes de potencializar a inteligência. Mas este não é o meu ponto.
Na sexta-feira na feira o bêbado da praça pegou de graça um pedaço de peixe não precificado porque culturalmente não é consumível.
O costume nos faz pagar caro ou desprezar coisas e pessoas.
Precificamos pessoas em detrimento do consumo de coisas.
Nossa concepção de restos diz muito sobre a nossa cultura e a nossa fé.