O pós-natal de Jesus e o nosso pós-2023

Difícil imaginar José e Maria tomando digestivos, por haver comido demais, na véspera de Natal (Rubem Alves).

Entre os dias 25 e 31 de dezembro é comum ficarmos com certo fastio, enjoo, mal-estar por conta das misturas de comidas e bebidas. Consentimos excedermos nas festas de final de ano. Depois bate a azia acompanhada da culpa.

As academias cheias de gente querendo queimar gorduras e tonificar os músculos. Atletas de fim de semana fazendo hora extra ao ar livre, espichados para o sol com corridinhas milagrosas. Pela manhã ouvimos liquidificadores furiosos dos vizinhos triturando frutas e ervas. Como se sucos detox além de purificar também redimisse.

Mas, e quando o fastio é de outra natureza?

O ano de 2023 foi temperado com condimentos estranhos. Chegamos ao final do ano cansados, com tédio existencial, com todos os nossos limites testados.

Apareceram muitos empreendedores risonhos e pregadores anacrônicos querendo nos ensinar a tirar vantagens do caos.

Nesta semana, não são poucos os que estão angustiados quanto ao que farão do resto das suas vidas. Previsões nada otimistas. Percepção que não suportariam se em 2024 tiverem que viver mais do mesmo.

Bate a náusea de viver com ânsia de vômito e certa descrença no destino.

Permita-me uma breve referência ao despojamento de Jesus como o espírito de Natal que perdura para além de dezembro e para muito além do discurso religioso.

O que foi emprestado a Jesus?

A manjedoura em que Maria e José colocaram o bebê, foi emprestada (Lucas 2.7).

O pote para tirar água do fundo do poço para o sedento andarilho, foi emprestado pela mulher samaritana (João 4.11).

Os pães e peixes que multiplicou para alimentar a multidão, foram emprestados por um menino (João 6.9).

O barco que lhe serviu de plataforma para ensinar as multidões e fazer pequenas travessias, foi emprestado pelo pescador Simão (Lucas 5.3).

Na sua entrada triunfal em Jerusalém montava num jumentinho, emprestado por um amigo oculto (Lucas 19.30, 31).

O cenáculo mobilado onde comeu a última ceia de Páscoa com os seus amigos, foi emprestado, pois, ele não era proprietário, não tinha onde reclinar a cabeça (Lucas 22.10-12).

O túmulo onde foi sepultado, foi emprestado por José de Arimatéia (Lucas 23.50-53).

Quando nasceu, não havia lugar para sua família na hospedaria. Maria o enfaixou, provavelmente, com panos improvisados e não mantas do enxoval de bebê (Lucas 2.7).

Quando morreu, o seu corpo foi tirado da cruz e envolto num lençol de linho. Na verdade, o último préstimo de José de Arimatéia (Lucas 23.50-53).

Maria Madalena e outras amigas foram ao túmulo para perfumar o lugar com aromas que haviam preparado. Perplexas, se deram conta que a pedra que tampava o túmulo fora removida e não havia corpo morto para perfumar. Nada viram, senão o lençol de linho (Lucas 24.1-12).

Quando nasceu não tinha berço e quando morreu não tinha onde cair morto.

Que em 2024 desfrutemos experiências com o divino ao assumirmos a coragem de ser humanos, demasiadamente humanos. Seja qual for o seu gosto ou necessidade, que nesse detox para readquirirmos o renovo da vida, acrescentemos o fiapo de esperança que nasce nos lugares improváveis. Um fiapo de esperança que nasce num tempo de enorme fastio em que pessoas são coisificadas e patrimônios são cultuados. A vida vale mais do que as coisas. Seguindo o exemplo de Jesus, usamos coisas e amamos pessoas.

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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