Em que creem os que não creem?
Pelos interlocutores e pelo tema anunciado não seria um absurdo especular que de um lado da trincheira estaria Umberto Eco no ataque, com teses típicas do ceticismo, enquanto do outro, na defensiva, estaria Carlo Maria Martini demarcando a especificidade da fé. Mera especulação que não se confirma.
A dialética epistolar nada faz lembrar um combate campal em que os oponentes se preparam nas vésperas para destruir o inimigo, nem mesmo a figura mais amena de oponentes que se posicionam de tocaia atrás das trincheiras querendo surpreender o outro. De fato, percebe-se ao longo do diálogo epistolar que ambos estão abertos, expostos e interessados no exercício da escuta respeitosa.
Os interlocutores não desprezam as divergências, mas a título de ênfase, buscam encontrar os pontos de convergências. Portanto, os que não creem acreditam na ética. Eis o grande ponto de encontro.
Imaginar que a ética é um apetrecho cristão, simplesmente é reduzi-la e superestimar o fenômeno religioso.
Notadamente, todas as interpelações que Eco elabora vão no sentido de perguntar pelos sentidos éticos. Resumidamente, ilustramos o ponto de partida do escritor e filósofo italiano por meio de quatro questões básicas:
- No final do segundo milênio, diante da notória obsessão laica pelo apocalipse, haveria uma noção de esperança comum a crentes e não-crentes?
- Quando tem inicio a vida? Como se posiciona o teólogo diante do criacionismo clássico hoje?
- Quais são as razões doutrinais para interditar o sacerdócio às mulheres?
- Ética laica — baseada no instinto natural que reconhece o outro e promove o bem — em si já não encontra a sua justificativa?
Textualmente, Eco declara o seu objetivo a Martini. Não existem malabarismos linguísticos com feições de armadilhas retóricas. Não existe sujeito oculto, nem argumentos nas entrelinhas. Eco desvenda a sua perspectiva, bem como o seu interesse. Ao fazê-lo, por extensão, declara no que crê:
Superados os problemas de etiqueta, permanecem os da ética, pois considero que é principalmente deles que deveríamos tratar no curso de um diálogo que pretende encontrar alguns pontos comuns entre o mundo católico e o mundo laico. (ECO; MARTINI, 2001, p. 12).
Chamemos de teologia política essa reflexão que orienta a prática do cristão na sociedade. Sentidos de promoção do bem ou atos de justiça que são justificados pela fé. Essencialmente tais manifestações sociais terão dimensão ética que redundarão em testemunho.
Tomando por base o diálogo epistolar entre Martini e Eco, não é certo que o testemunho do cristão que pensa e age de forma sistêmica a partir da fé seja suficiente para falar ao cético sobre um Deus no qual ele não crê. A pretensão do livro enquanto registro de uma conversa amistosa é bem mais modesta: falar aos não-crentes sobre a fé dos crentes.
A ética laica serve-se de fundamentação humanística. Nela está o primado do humano. Nela não está Deus. Em outros termos, os adeptos da ética laica acreditam na viabilidade de uma reta convivência humana. Têm como objetivo a promoção do homem.
Conforme salientou Martini, princípios humanísticos, eventualmente, podem convergir com os princípios cristãos. Mas, ainda assim, falta perguntar pelos fundamentos. O exercício da reflexão ética lida com as ações sociais, mas não ignora as motivações e valores que as fundamentam.
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Apesar das distâncias geográfica, temporal e cultural dessa conversa original, a leitura deste livro nos ajuda a pensar na nossa situação brasileira.
Que tempo estranho em que parece que a maioria cristã não quer conversar, apenas pregar para os convertidos. Rituais de demarcação de poder à moda da teologia do domínio.
Diálogos interrompidos por bancadas evangélicas que vocalizam o discurso do ódio. Fazem dos opositores inimigos mortais.
Expulsão dos intelectuais dos seminários católicos e evangélicos. Monopólio da fala teológica pelas cúpulas eclesiásticas. Medo das ciências, da filosofia e das pesquisas acadêmicas.
A mediocridade impera sob o disfarce da piedade.
Diante deste silêncio constrangedor vamos ter que nos esforçar para promover diálogos que partam de uma convergência fundamental entre crentes e não crentes: fundamentação humanística.
Em que creem os que não creem que converge com a fé dos que creem? A emancipação humana.
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ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que creem os que não creem? 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.