Eu fui ao aniversário de 64 anos do Silas Malafaia

Simulacro é uma categoria interpretativa apropriada para entendermos cenas religiosas com evidentes interesses eleitorais.

Simulacros utilizados nas eleições de 2022 voltam com novas roupagens para as eleições de 2026.

Notas do diário de campo, Culto na Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), quinta-feira, 15/09/2022, no templo sede, Rua Montevidéu, 900, Penha – Rio de Janeiro.

O Silas Malafaia declarou que toda a imprensa foi convidada por ele. Pela evolução da programação, o evento foi planejado para ser extensivamente transmitido e repercutido nas mídias, tanto pelos veículos jornalísticos, quanto pelas redes sociais.

O evento religioso em questão, com implicações políticas, para muitas pessoas que vieram de longe ou perto, foi muito além das duas horas de culto no templo. Implicou em sociabilidade, como por exemplo, participar da excursão, ajudar na fase de preparativos, desfrutar dos passeios antes e depois do evento, conversar e conviver com pessoas, enfim, além das expectativas espirituais, existem as teias sociais. Conivências com experiências sociais que dão o sentido comunitário.

Consegui entrar contando com a generosidade do recepcionista/segurança que se portava como guardião de uma das portas. Não havia a possibilidade de progredir no espaço, lotação máxima. Além dos seis mil lugares plenamente preenchidos, havia uma multidão em pé disputando espaço dentro do templo, além da outra multidão que assistia através do telão na rua. O mega templo ficou pequeno.

Houve um verdadeiro desfile de pastores e personalidades evangélicas que deram breves saudações e felicitações ao pastor Silas Malafaia. Exaltaram a combatividade e coragem do aniversariante. Transformou-se num desfile de celebridades evangélicas, demonstração de poder, simbolização do monopólio da fala evangélica, estandardização dos pastores de grandes rebanhos.

O culto ganhou contornos de comício quando a cantora gospel Eyshila Oliveira Santos, antes de cantar, animou a plateia com o seguinte gracejo:

Queria que você falasse aí pra 22 pessoas que estão ao seu lado que Deus é fiel!

A indicação do número 22 foi uma alusão ao número do Partido Liberal e principalmente à candidatura do Jair Bolsonaro que tinha entrado há pouco no templo e se sentado ao lado do pastor Silas Malafaia. O riso foi geral.

Enquanto uns se manifestavam com evocações religiosas – Amém; Glória a Deus; Aleluia – outros gritavam palavras de cunho político eleitoral – Bolsonaro; Mito: Brasil acima de tudo e Deus acima de todos

Com o público num tipo de êxtase religioso/político, a cantora começou a cantar dando ao ambiente um sentido de festa, tanto pelo aniversário do pastor Silas Malafaia, quanto pela chegada ao local do Jair Bolsonaro.

Em seguida, foi franqueada a palavra às autoridades políticas presentes. O governador do Estado do Rio de Janeiro, Claúdio Castro (PL-RJ), candidato à reeleição, se pronunciou nesses termos sobre o pastor Silas Malafaia:

“Boa noite, povo de Deus! A paz a todos! O pastor Silas tem sido uma bênção na nossa vida. Pastor Silas tem sido aquele que tem defendido o que é correto. Num mundo de tantas incoerências, é bom, pastor, olhar e ver alguém tão coerente como o senhor. O senhor tem sido essa reserva moral para todos nós. Realmente esse elixir da graça de Deus.”

Na sequência, ovacionado, foi anunciado o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Uma profusão de gente tentando encontrar algum ângulo para conseguir fotografar ou filmar. Senhoras balançando a bandeira nacional e o coro espontâneo cantando: “mito, mito, mito…”

Nesse ponto alto da celebração religiosa em que se falava em ações de graças pela vida do pastor Silas Malafaia, o clima de campanha se impôs e o protocolo litúrgico deu lugar à vibração típica dos comícios. Transcrição do discurso que o Bolsonaro proferiu na ocasião:

“Boa noite a todos! A paz de Cristo! Em recinto como esse, eu prefiro muito mais ouvir do que falar. Mas quem sou eu para desobedecer ao meu conselheiro. Conselheiro mesmo. Por vezes, ele bem sabe disso, em momentos de alta temperatura, eu não abro os áudios dele e ele fica irritado comigo. Eu falo: “Silas, eu não vou abrir porque quero continuar ser o seu amigo.” Então, esse é o amigo de verdade: que bota pra fora, que fala, que reclama, dá tua opinião, cobra, mas que no final, a nossa amizade acima de tudo. Porque sabemos que somos passageiros aqui. E o Silas também marcou a minha vida. Eu sempre digo que um homem, solteiro, está cansado de ser feliz, procura uma mulher, uma princesa, se casa com ela para ser mais feliz ainda. O Silas me casou em 2013. E um casamento abençoado graças a Deus.”

Ditas as palavras preliminares de felicitações e demonstrações de amizade antiga, Bolsonaro reitera o que fora dito em outras ocasiões, em que Silas Malafaia foi apresentado como conselheiro do presidente. Importante distinguir, nem todos os amigos cumprem o papel de conselheiro, nem todos os conselheiros são amigos próximos. A deferência do Jair Bolsonaro ao Silas Malafaia não foi um mero protocolo.

Ainda que não tenha pedido votos de forma direta, Bolsonaro caracterizou a sua gestão na fala na ADVEC como um governo de resgates dos símbolos cívicos e da moralidade conservadora. Não se referiu a disputa eleitoral, mas a uma suposta guerra do bem contra o mal. A vitória eleitoral seria a garantia da continuidade da vitória do bem contra o mal.

Logo após foi a vez do orador oficial da ocasião, pastor Cláudio Duarte. Trata-se de um stand up adaptado ao universo das igrejas evangélicas. Conferencista e palestrante que usa o humor para entreter e pregar conteúdos bíblicos. Uma oratória popular que coloca os personagens bíblicos em roupagens do cotidiano brasileiro, especialmente no contexto da alegada família evangélica tradicional que ambiciona a ascensão social. Voz cadenciada com sotaque caipira, enquanto orador de megas eventos, encarna o personagem para fazer o seu stand up.

No que se refere à visão política, a identificação com o Silas Malafaia é completa. Fazem parte do mesmo grupo e estão alinhados para influenciar os pastores e igrejas. Alardeiam que está em curso um projeto político para destruir a família tradicional e promover a ideologia de gênero.

Na sua participação no aniversário do líder da ADVEC, Cláudio Duarte fez um paralelo entre Silas Malafaia e o Apóstolo Pedro. A característica comum entre eles seria a coragem. Na conclusão, enfatizou as virtudes de líderes que além de corajosos, são capazes de atitudes inusitadas (como Pedro sair do barco na tempestade) porque são sensíveis à voz de Jesus que convida a fazer o que poucos estariam dispostos a obedecer. Nesse sentido, Apóstolo Pedro, Silas Malafaia e o Jair Bolsonaro seriam líderes da mesma estirpe. Em momentos de grandes turbulências e perigos, Deus escolhe homens destemidos para grandes missões. Em outros termos, como Pedro, Silas Malafaia e Jair Bolsonaro andam sobre as ondas, não assombrados com as vozes do vento contrário, mas obedientes à voz de comando de Jesus.

A fala mais esperada da noite era a do aniversariante. Quando o Silas Malafaia foi ao púlpito para agradecer as manifestações de carinho, houve uma grande movimentação dos jornalistas presentes. Correria para registrar cada palavra e cada imagem. Parecia que a programação se encaminhava para o término com as considerações finais e as deferências do anfitrião, mas tratou-se na verdade da parte em que o culto foi mais explicitamente transformado em comício.

O que se seguiu foi a explícita transformação do altar da igreja em um tipo de coreto eleitoral com direito a apresentação da chapa ideal, segundo a preferência do aniversariante. Foram chamados à frente para a oração de bênção os seguintes candidatos do Partido Liberal: Jair Bolsonaro (candidato à presidência); Cláudio Castro (candidato a governador do Rio de Janeiro); Romário (candidato ao senado); Sóstenes Cavalcante (candidato a deputado federal); Samuel Malafaia (candidato a deputado estadual).

Já não havia qualquer recato ou cuidado para que a celebração religiosa não ultrapassasse as fronteiras das regras das disputas eleitorais. Em tom desafiador, dirigindo-se aos jornalistas presentes, exaltado, o Silas Malafaia esbravejou:

“Nós vamos influenciar, sim!”

Tamanha desenvoltura foi supostamente legitimada pelos textos bíblicos citados pelo Malafaia. Utilizou o recurso de parecer bíblico na fundamentação das suas opiniões e preferências políticas. Poderia emprestar aos candidatos a sua credibilidade e as estruturas da igreja porque se considerava com o mandato divino que precede e justifica as representações políticas.

Antes da oração que selaria o seu apoio aos políticos escolhidos, o anfitrião leu o seguinte texto bíblico:

“Depois dele veio Jair, de Gileade, que liderou Israel durante vinte e dois anos.” (Juízes 10.3)

Não se tratou de uma referência velada. A propósito, as coisas ditas e feitas nessa celebração foram explícitas. Fez parecer algo bem maior do que um simples gracejo. Os símbolos também importam neste caso. A leitura bíblica peculiar foi feita antes da oração e exatamente no lugar de onde os pregadores expõem seus sermões. Minimizar o ocorrido sugerindo mera coincidência não faz jus a contundência e seriedade com que o Silas Malafaia o fez.

Durante os dezoitos minutos do seu discurso, o aniversariante se arvorou de argumentos para convencer aos ouvintes que estamos num momento gravíssimo que vai além do período eleitoral. Segundo ele, estamos numa batalha espiritual, guerra do bem contra o mal. Enquanto uns defendem direito ao aborto, casamento gay, socialismo e comunismo, outros, como ele, se colocam como reserva moral disposta a lutar pelos valores que consideram inegociáveis.

O tom adquirido para defender as pautas conservadoras foi do enfrentamento, como é característico do Malafaia. Gritos e gesticulações que caracterizam o ardor dos pregadores pentecostais em cultos em que o convite principal é para os pecadores aceitarem a Jesus. Só que no caso do discurso proferido pelo pastor Silas Malafaia, o ardor foi no sentido de ungir os seus escolhidos para os respectivos mandatos públicos.

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor

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