Evangélicos invisíveis que não são notícias

Na ladeira a mãe na faixa dos trinta queria atravessar com as filhas gêmeas que beiravam aos dez anos. Cada uma segura por uma mão. A tarefa era simples, atravessar a rua. Mas não para a Clarinha. Medo das motos que desciam, medo dos carros que subiam, medo do barulho, medo dos meninos da favela, medo dos estranhos, confusão para ler o entorno e tomar decisões simples.

Do outro lado da rua o pastor percebeu que elas precisavam de ajuda para se orientarem. Sim, uma mãe atípica com duas meninas especiais. Geralmente eram tratadas com indiferença, imperceptíveis, descartáveis.

Contudo, naquela tarde as invisíveis foram notadas. O pastor Melque tomou a iniciativa e mudou o seu curso para encontrá-las. O gesto era singelo, ajudá-las a atravessar a Ladeira Ary Barroso na bifurcação entre as favelas Chapéu Mangueira e Babilônia.

Na semana seguinte a Clarinha estava na igreja da ladeira. A comunidade de fé liderada por aquele pastor que a ajudou a atravessar a rua e a convidou para o culto no domingo.

As meninas ficavam trancadas no banheiro da igreja por longo tempo. Pensaram as professoras das crianças que as gêmeas estavam com vergonha. Socialização difícil, dificuldades cognitivas e fonoaudiológicas significativas. Ainda não eram alfabetizadas, embora estivessem matriculadas na escola.

A Tia Lia, inspetora da Escola Municipal São Tomás de Aquino, as conheceu na igreja e passou a ter pelas meninas um especial interesse no ambiente escolar. As invisíveis passaram a ser olhadas e amadas como se contassem com uma anja da guarda. Clarinha se afeiçoou a irmã Lia porque ela, embora adulta na idade, também precisava de cuidados especiais.

Os diáconos e diaconisas descobriram o mistério. Maria e Madalena passavam longo tempo no banheiro da igreja porque não tinham banheiro em casa. Não se tratava de vergonha. Era a pobreza. Sem saneamento básico, num barraco em cima do barranco, com vista para o mar na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.

Os irmãos da igreja se organizaram. Fizeram cantinas, almoços, festa do milho, rifas, bingos, ofertas, campanhas para conseguirem arrecadar dinheiro para comprar material de construção. Dízimos transformados em tijolos e cimento. Um engenheiro voluntário fez o projeto e orientou a obra. Pessoas simples resolveram estender a mão para ajudar no mutirão.

No espaço da igreja, durante a semana funciona a ONG Dignità, no contraturno escolar. Diversas iniciativas sociais tendo como beneficiárias crianças e adolescentes em vulnerabilidade social. Maria e Madalena, depois da escola pela manhã, na ladeira, iam direto para a igreja. Almoçavam, brincavam, estudavam e eram olhadas pela equipe multidisciplinar nas suas singularidades. Aprenderam a ler. Liberdade para serem atípicas, respeitadas e amadas. De singularidade em singularidade, foram para o mercado de trabalho e estão atualmente com 28 anos.

Clarinha passou a trabalhar na própria igreja. O dinheirinho era pouco, mas com as meninas trabalhando, a situação melhorou. Andava sempre bem arrumada fazendo combinações ao seu modo. O ritual para ir ao culto aos domingos começava na véspera quando fazia toca no cabelo para dormir. Logo após o café da manhã no domingo, pintava as unhas com cores vivas, passava no capricho os vestidos e quando se aproximava o horário da escolinha dominical… ela caprichava na maquiagem.

O pessoal da igreja encarnava, mas ela não entendia e tomava como elogio. Ria e agradecia na pureza dela. Gostava dos florais e da cor rosa. Das três, era a mais menina.

O culto de quinta-feira é o culto de oração. Formam um círculo de cadeiras e conversam sobre a vida. Algumas vezes o pastor Denis saía de casa com o estudo bíblico preparado e impresso. Mas, antes das aulas cheias de erudição, os pedidos de oração.

Assuntos recorrentes pelos quais oram: conflitos familiares, situações da comunidade, emprego e enfermidades. Nenhum desses motivos, porém, são tão pronunciados, com tanto dor, quanto o alcoolismo de homens incapazes de atravessar as filhas.

Diversas vezes o pastor Denis voltava para casa com vergonha do que havia preparado para falar. Na roda, na condição de ouvinte, enternecido, lembrava do apóstolo Paulo que disse preferir falar na congregação cinco palavras compreensíveis a falar dez mil palavras em outras línguas.

No círculo bíblico popular, a oração é escuta e a bíblia é conversa em que risos e lágrimas ficam indistinguíveis.

Em julho deste ano a igreja da ladeira foi comemorar o seu aniversário em um sítio na Região Oeste do Rio. Churrasco, futebol, música, dominó, brincadeiras, criançada na piscina, conversas com lembranças que traziam gargalhadas. Uma festa!

No canto, amuada, a Clarinha…

Na semana que se seguiu foi atendida na Clínica da Família Chapéu Mangueira e Babilônia, Unidade de Atenção Primária, e diagnosticada com pneumonia. Sempre avessa aos exames. Muito medo de ficar internada. Era capaz de dissimular a dor para não ser levada ao Hospital. A recuperação foi difícil. Visitas, comidinhas para dar sustância, folhas para chá e muita oração nos cultos de quinta-feira e domingo.

A irmãzinha não ficava boa.

No dia 07 de setembro, estando os bairros de Copacabana e Leme lotados de manifestantes, antes de ir para a igreja o pastor Denis foi para a Favela da Rocinha. Subiu na garupa do mototáxi e pediu para levá-lo para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no local conhecido como curva do S, na Estrada da Gávea.

Pagou R$ 5,00 e recebeu de troco um olhar compadecido. Não sabia quem ele era, muito menos quem visitaria, mas o rapaz do corre lhe deu de troco um sorriso gratuito, para que gastasse com quem estava precisando.

Deixaram o Denis entrar fora do horário de visita. Não se identificou como pastor. Sequer mostrou documentos. A assistente social, em acordo com a médica de plantão, o autorizou a entrar na “sala vermelha”. Ficou curioso quanto ao nome da sala, no entanto, poupou a médica da pergunta.

A porta se abriu e lá ela estava. Apenas dois leitos ocupados. Chegou perto e a despertou.

– Clarinha!

– Pastor Denis!

Emocionada, chorou de soluçar. O pastor ficou olhando para a enfermeira como quem pedia ajuda. A enfermeira também estava emocionada. Contida e compadecida.

– Pastor, nunca mais eu fui arrumar a igrejinha!

– Fica tranquila, você foi demitida.

Dessa vez, ela riu de soluçar. Entendeu a ironia. Ele conseguiu fazê-la rir e se percebeu desamparado com vontade de chorar.

Recitou o Salmo 23, seguido por ela, verso por verso. Depois emendou na Oração do Pai Nosso, que ela não precisou repetir, pois, sabia de cor. Passou a mão nos seus cabelos e disse o quanto ela era amada por todos da igreja da ladeira, a igrejinha que a ajudou a atravessar a vida.

Deu uns três passos em direção a porta de saída da “sala vermelha” quando o ouviu a voz fraca da Clarinha:

– Pastor, no culto de hoje à noite, pede a igrejinha para orar por mim!

Assim foi feito.

No sábado (13) o pastor foi ao Hospital Miguel Couto, Sistema Único de Saúde (SUS), localizado no bairro do Leblon. Conforme dito pela médica da UPA da Rocinha, ela seria transferida para exames mais detidos. Clarinha estava com câncer em estágio bem avançado no fígado e no pâncreas. Nada mais a ser feito.

Ao lado do seu leito, dessa vez não houve diálogo. Ela estava aparentemente inconsciente. Como um dia o pastor Melque fez, coube ao pastor Denis ajudá-la a fazer a travessia.

Maria e Madalena estavam seguras. Dessa vez, Clarinha faria a travessia sozinha.

Denis pegou a mão dela e começou a cantar baixinho na enfermaria os cânticos que costumavam cantar nas reuniões de quinta-feira. A Clarinha era a responsável em pegar e distribuir as pastas com as letras das músicas.

Muito desafinada e muito feliz! Assim era o seu canto.

Ali, sabendo que era a última vez, ainda que sem a pasta, o pastor Denis cantou! Cantava e lembrava quantas vezes voltou para casa perguntando a Deus porque seus ouvintes eram tão poucos, e alguns, “incapazes” de entender o que ele havia preparado para ensinar.

Sim, os momentos mais felizes da vida da irmã Clarinha foram vividos na igrejinha da ladeira. Como ensinou Jesus: “Uma vida mais do que o mundo inteiro.”

Hoje (16) para o sepultamento o pastor pediu para a irmã Zaza levar as pastas dos cânticos. Não vai levar sermão impresso porque nunca funcionou para a Claudinha.

A mensagem já foi pregada por uma igrejinha invisível na ladeira. Clarinha não foi reduzida a condição de mulher geneticamente marcada pelos transtornos mentais. Na comunidade do afeto, pessoas ditas desorientadas são capazes de conduzir pastores e comunidades de fé para o caminho esquecido da simplicidade.

Para além de eleitores em disputa e de nativos de pesquisas, evangélicos são pessoas.

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, professor universitário, pesquisador (pós-doc USP), cientista social e pastor

OPINIÃO
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