Igreja Evangélica na bifurcação da ladeira: fé, favela e ética

Muitas análises e generalizações sobre os evangélicos nascem de visões por cima. Sugiro pensar neste segmento a partir de outra perspectiva: por dentro.

Olhar de perto e viver a experiência comunitária, não só observar à distância, como se dissecasse um objeto no laboratório.

O culto começou às 19h naquela quinta-feira superquente com sensação térmica para lá dos 40 Cº. Fechamos todas as janelas, ligamos o ar-condicionado, muito mais para abafar os sons que vinham da quadra da comunidade do que para climatizar o salão de culto. O barulho ensurdecedor aumentava a nossa sensação de calor.

A favela é barulhenta.

Na reunião de oração, sequer usamos microfone. As orações intercessórias são precedidas do momento de “escutatórias”. Grupo de partilha, singelamente terapêutico.

Quase no final do culto entrou uma visitante. Simpática, abriu o sorriso e perguntou se podia participar. Logo as irmãs da igreja se levantaram para acomodá-los.

Helena (nome fictício), 28 anos, bem magrinha, olhar expressivo e um sorrisão largo. Três filhos, um bebê no colo, uma menina de 2 e um garoto de 3 anos.

Terminado o momento devocional, cada um pôs à mesa o que trouxe de casa para o lanche coletivo. Sanduíche de queijo, bolos, biscoitos, empadão de frango, mate, café e sucos. As crianças estavam famintas, o que deixou a Helena constrangida. Tentou algumas vezes afastar os filhos da mesa, mas não foi atendida.

Terminada a confraternização, a irmã Valderice reuniu potes de sorvete vazios. Tudo que havia sobrado ela deu para a visitante levar. Isso longe dos olhos dos presentes para não constranger a beneficiária.

Aqueles que têm pouco dão com alegria aos que não têm nada. Nem só de dízimos e ofertas vivem as igrejas evangélicas periféricas no Brasil profundo, mas no partir o “pão nosso”.

No domingo, igreja cheia, antes de o culto começar, a Helena chegou com as três crianças. Desta vez, estavam arrumadinhas. Encontrou um lugar no cantinho e começou a amamentar o bebê. A responsável pelo culto infantil, que acontece simultâneo ao culto no templo, levou o casal de irmãos para a sala anexa, decorada e apropriada para receber os pequenos enquanto seus pais cultuam.

Helena cantava os cânticos sem precisar ler as letras projetadas na parede no momento do louvor congregacional. Olhos vivos, sorriso largo, gestual típico dos cultos pentecostais. Durante a mensagem pregada pelo pastor, demonstrava fome por cada palavra.

A cantina após o culto é habitual. Os membros cooperam levando doces, salgados, pizza, cachorro-quente, caldos e eventualmente refeições completas. O objetivo era arrecadar fundos para os projetos sociais que a igreja realiza na comunidade com crianças no contrafluxo escolar.

O pós-culto na cantina é marcado por abraços, fofocas ditas santas, brincadeiras e gargalhadas. Às vezes o tempo de sociabilidade supera o tempo demarcado da liturgia no templo.

No início tímida, a Helena estava se divertindo. Os filhos já haviam lanchado na classe infantil. Agora estavam correndo com as outras crianças na parte externa da igreja sob o olhar dos pais. Com o bebê no colo, comia lentamente o lanche que lhe foi servido. Desta vez, além da marmita com os itens da cantina que havia sobrado, as irmãs providenciaram uma cesta básica. O problema é que ela não tinha mãos para levar para casa, uma vez que estava com as crianças. Pegaria noutro dia.

Na quinta-feira seguinte, chegou antes das 19h. Só estava com o bebê de colo. Novamente, no cantinho, bem discreta com uma frauda sobre o peito, amamentava. Entrou na roda de conversa. Ouviu os pedidos de oração com os breves comentários intercalados. Cantou e se emocionou. No culto de quinta-feira, antes das orações intercessórias, praticamos a “escutatória” (salve, Rubens Alves!).

Helena pediu para falar. Era nova naquela favela da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Chegou após a morte do seu companheiro numa favela na zona oeste do Rio. A questão é que os milicianos assassinaram o rapaz envolvido com o tráfico de drogas. Ela não pôde permanecer na sua casa e na comunidade porque a família do companheiro morto a acusava de ser a mandante da execução. Pegou as crianças e fugiu. Afirmou que não devia nada à milícia, mas temia a família do finado, cheia de “bichos soltos”, segundo ela.

Foi parar na zona sul confiada na ajuda de uma tia, até encontrar um cantinho. Soube que no espaço da igreja durante a semana funcionava uma ONG voltada para crianças em vulnerabilidade social. Como os filhos não estavam matriculados em creche da prefeitura, se pudessem ficar um período na ONG, disse ela, ajudaria muito para ela conseguir ir à luta.

Oramos pela Helena e pelas crianças, constatando a nossa própria impotência diante de casos tão extremos. Precisávamos de alguns dias para nos organizar. Nesses casos, é comum alguns irmãos da igreja agirem por impulsividade no ímpeto de ajudar. Tudo o que sabíamos sobre a visitante era o que ela mesma narrou no círculo de oração.

No domingo que se seguiu, Helena não apareceu.

Na quinta-feira imediata, na igreja, a pergunta comum era pela Helena e as crianças. Novamente, ela não veio ao culto.

– Será que ela voltou para a favela da zona oeste onde saiu jurada? – Indagou a Valderice.

– Tomara que não tenha acontecido nada de ruim! – Disse a Ivone, com gesto de mãos como se clamasse aos céus.

– Nada disso, irmãos! Ela continua aqui na comunidade. Encontrei com ela na ladeira ontem. A convidei para o culto de hoje e ela disse que não viria. – O jovem André trouxe a informação.

– Ela disse o motivo? – Quis saber a Elizabeth.

– Disse sim. Achou estranho que no culto de quinta-feira o pastor e outros irmãos estavam de bermuda. Mas se escandalizou mesmo porque o pastor usa brinco.

O irmão André foi apenas o mensageiro. Pelo visto, o brinco dele não era problema, mas o do pastor…

Falando de ética, não necessariamente numa favela carioca numa temperatura de 40 Cº, Jesus conceituou a ética religiosa hipócrita dos escribas e fariseus da seguinte forma: “Coam mosquito e engolem camelo” (Mateus 23.24).

Pois é, para além da idealização que fazemos de favela, pobres e evangélicos, visto por cima, parece tudo igual e coerente. Mas embrenhados nessa realidade, por dentro, pessoas e situações são mais complexas do que se imagina.

Valdemar Figueredo

Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor

Leave a Reply

Your email address will not be published.