Inspiração bíblica

O humorista Rodrigo Marques fez uma piada crítica sobre os cristãos e a Bíblia. Nessa piada, ele criticava de maneira precisa o fato de que os cristãos dizem pautar a fé e até a própria existência na Bíblia, mas quase nunca a leem, muito menos a estudam.

Parte dessa situação se deve a dificuldade de leitura e entendimento de um texto milenar, distante histórica, cultural e linguisticamente. Outra parte pode estar conectada a transformação da Bíblia em um ícone cultural. Um ícone é um objeto que se acredita ter um poder mediador de uma realidade transcendente. Esse poder é derivado, ou reafirmado, pelos inúmeros rituais praticados em relação a ele.

Por exemplo, a Bíblia aberta em um “salmo de proteção” em casa; jurar dizer a verdade com a mão sobre a Bíblia; etc. Por fim, como a fé, na mentalidade popular, está conectada a crer corretamente, a Bíblia se torna o principal mediador dessa fé. A verdadeira fé está na Bíblia, já que ela é a palavra infalível e inerrante de Deus, ainda que não haja leitura de fato desse texto sagrado

Um dos versos bíblicos utilizados para defender essa crença na inerrância e infalibilidade da Bíblia é: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” (2 Timóteo 3:16-17, NAA).

Algumas considerações são necessárias. A primeira é que quando escrita a carta à Timóteo, não havia um cânon do Novo Testamento, portanto, esse “Escritura” se refere somente ao Antigo Testamento (ou Bíblia Hebraica) – e isso sem levar em consideração a discussão sobre esse cânon ainda estar acontecendo na época.

Outra consideração é o contexto imediato, que não trata da “Escritura” de maneira teórica ou doutrinária. Os conselhos que Paulo está dando derivam de um problema que Timóteo está enfrentando, o de gente resistente a pregação e que estão trabalhando contra a pregação. Paulo elogia Timóteo por estar seguindo seus ensinos e até se comportando como Paulo na perseguição que está sofrendo. Nesse contexto de perseverar em meio as dificuldades, Paulo aconselha Timóteo a permanecer naquilo que aprendeu das “sagradas letras”, pois nelas estão a sabedoria para a salvação pela fé em Cristo Jesus.

Esses dois tópicos já nos afastam definitivamente de qualquer tipo de conclusão relacionada a inerrância e infalibilidade. O contexto é específico e não se refere a Bíblia como conhecemos hoje, muito menos a conceitos teológicos construídos mais recentemente.

A revelação de Deus na e através da Bíblia é dependente da ação humana. Isso porque a Bíblia não desceu pronta do céu, escrita pela mão de Deus. Sua feitura se deu através de seres humanos que escreveram, outros que copiaram, outros que traduziram e outros tantos que a leram/interpretaram.

Esperar da Bíblia o que ela não é e não pode oferecer é colocá-la num lugar que não lhe pertence. Dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus não significa dizer que ela é inerrante e infalível, mas que Deus se revela através de suas páginas, produzidas por seres humanos tremendamente limitados pelo tempo, pelo espaço e pelas circunstâncias em que escreveram, copiaram, traduziram e leram/leem.

Edson Nunes

Pastor da Comunidade, em São Paulo, capital. Formado em Letras e em Teologia (Unasp), com mestrado e doutorado em Bíblia Hebraica (USP) e estágio de pós-doutorado em Bíblia Hebraica (University of California, Berkeley). Pesquiso a Bíblia como literatura e, por isso, me interesso em narrativa bíblica e poesia bíblica.

OPINIÃO
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