Intolerância Religiosa na sessão de descarrego na Igreja Universal

Por ocasião do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, compartilho com os leitores dessa coluna um fragmento da minha pesquisa de campo realizada no segundo semestre de 2022, em pleno período eleitoral. Com essa amostragem, fica evidente que para boa parte dos iurdianos em militância na controvertida guerra espiritual, os que não são por eles, supõem, são do diabo.

Ao chegar à Catedral Rio de Janeiro, Sede Estadual da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), deparo-me com muitas pessoas vestidas de branco. No templo, percebo que os trajados completamente de branco são pastores. Em número menor, outros estavam vestidos de preto. Não quis perguntar o porquê da distinção, mas foi fácil perceber que estivessem de branco ou de preto, cumpriam escala de serviço, plantão espiritual. Uma outra categoria de uniformizados desempenhava função auxiliar, mas não estavam vestidos como pastores e bispos. Nos símbolos das cores e nas disposições dos uniformes, ficam evidentes relações hierárquicas.

Sincronicamente todos se colocam de pé ao ouvir o som do shofar (Instrumento de sopro que era usado em solenidades sagradas dos judeus). O Bispo Eduardo Guilherme entrou, caminhou pelo amplo espaço do altar, ajoelhou-se na única cadeira deixada logo atrás do púlpito e quando se levantou, anunciou o cântico.

A atmosfera era de guerra espiritual. O bispo chamou à frente as pessoas que estavam se sentindo tristes, angustiadas, deprimidas, com depressão, com crise de ansiedade, com insônia, vendo vultos e com ideias suicidas. Quando os fiéis chegaram para a oração de libertação no espaço aberto, sem cadeiras, logo à frente do altar, pastores e obreiros já estavam perfilados à espera. O bispo continuou listando moléstias e convidando a que os crentes fossem à frente com fé. Centenas atenderam ao convite.

Ao som de uma música ao teclado o Bispo Eduardo Guilherme alternava conversa com Deus com ordens aos demônios. Evocou que os espíritos opressores se manifestassem porque, segundo ele, era noite de libertação. O som da voz do bispo ao microfone era grave e bem alta. A sessão de exorcismo durou das 19h30 às 21h40. A maioria, durante esse tempo, ficou em posição de prontidão e não se sentou.

Em dado momento ouvimos gritos entre aqueles que estavam na frente do altar. Umas três pessoas foram identificadas, e pastores e obreiros que estavam perto, de prontidão, impuseram as mãos nas cabeças delas e se puseram a exorcizar os espíritos.

O Bispo Eduardo Guilherme continuava andando de um lado para o outro com voz de autoridade dizendo que os demônios escondidos iam se manifestar. Tratava-se de uma ordem e não de um pedido. Ouvimos outros gritos e vimos outras pessoas se contorcendo. Até que destacaram da multidão um rapaz e o levaram ao altar onde estava o bispo. Na parte de baixo, para cada pessoa supostamente possessa havia um pastor ou obreiro segurando e expulsando os espíritos demoníacos. O bispo não se dirigiu ao rapaz, mas às forças espirituais que o dominavam. Fez uma entrevista deixando o suposto demônio falar ao microfone. Basicamente, o dito demônio, na voz do rapaz, dominado como se estivesse com as mãos amarradas e pernas bambas diante da autoridade espiritual do bispo, dizia que iria destruí-lo. Não ia adiantar expulsá-lo porque, como de outras vezes, ele voltaria com mais força para infernizar a vida do rapaz.

Foi o álibi que o bispo queria. Apareceu nos telões de plasma o texto bíblico de Mateus, capítulo 12, versos 43 a 45.

Quando um espírito imundo sai de um homem, passa por lugares áridos procurando descanso. Como não o encontra, diz: ‘Voltarei para a casa de onde saí’. Chegando, encontra a casa desocupada, varrida e em ordem. Então vai e traz consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro. Assim acontecerá a esta geração perversa.

Em termos interpretativos, o Bispo Eduardo Guilherme ritualizou o texto bíblico. Prática bastante usual na IURD. Falou uns vinte minutos sobre o texto bíblico tendo por base o vivenciado no salão da Catedral da IURD em Del Castilho. Ocorreu, então, o inverso do mais habitual nas prédicas cristãs em que o pregador busca a autoridade bíblica para referenciar seus argumentos. No caso relatado, a vivência de um exorcismo determinou o sentido do texto. A experiência precedeu ao texto.

Usando tanto o texto bíblico como a voz do rapaz supostamente endemoniado, o Bispo Eduardo Guilherme evocou sua autoridade para desfazer as obras das trevas. Demonizou a Umbanda, Quimbanda, Candomblé e toda sorte de macumbas. Na linguagem dele, muitas que estavam ali foram alvos de inveja e mau-olhado. Pessoas invejosas que se fazem de amigas fizeram trabalhos, entregaram oferendas em cachoeiras, participaram de rituais, levaram peças de roupas ou até mesmo mechas de cabelo, com o propósito de fazer mal, fechar caminhos. Muitas pessoas que estavam naquela sessão de descarrego foram alvo de amarrações demoníacas, mas naquela noite ficariam limpas. Portanto, o ambiente era de guerra espiritual.

Enquanto o suposto endemoniado se contorcia mudo no centro do altar atrás do bispo, centenas de pessoas eram exorcizadas por pastores e obreiros logo abaixo. Tratava-se de uma demonstração de força espiritual em que pessoas oprimidas eram libertas.

Devidamente perfilados todos colocaram as mãos sobre a própria cabeça e se puseram a repetir a oração conduzida pelo bispo. Num grito final, todos estavam livres dos encostos que os atormentavam. Nessa manifestação de fé, não é comum identificarmos figurantes. As pessoas não estão no templo para assistir a um culto. A celebração é corpórea. Incorporação em que os indivíduos participam ativamente.

Tendo amainado o ambiente, depois do canto alegre e sermos convidados a entregar por amor e gratidão dízimos e ofertas, os obreiros fizeram um tipo de triagem e formaram uma fila com uns dez voluntários. Encorajaram os fiéis a contarem testemunhos de vitórias obtidas pelo exercício da fé: livramento de uma queda de moto, cura de um tumor na cabeça, filha que reatou com a mãe depois de uma década de animosidades, casamento oficializado após turbulências que quase culminaram em suicídio, ganho de causa na justiça que determinou uma boa indenização, aposentadoria do pai etc.

O culto terminou com os fiéis alegres, semblantes aliviados, nem parecia que estiveram naquele ambiente carregado de tensões e conflitos espirituais. Música animada e as pessoas deixando o local sem pressa.

Enquanto escrevia esse relato da pesquisa de campo, procurei informações sobre o Bispo Eduardo Guilherme nas suas redes sociais. Constatei que realmente se trata de um bispo prestigiado na hierarquia na IURD e representativo de uma nova geração de líderes. Perfil de empreendedor aguerrido.

A Catedral da IURD no Rio de Janeiro tem capacidade para cerca de 12 mil pessoas sentadas. Tudo luxuoso, das poltronas aos lustres. Numa figura, enquanto a arquitetura gótica medieval falava da grandeza de Deus e da pequenez humana, a catedral da Igreja Universal faz referência aos símbolos do judaísmo numa leitura da ostentação da teologia da prosperidade. Neste caso, supõe-se, a grandeza humana não colide com a grandeza divina.

O que nos pareceu na fria noite de sexta-feira no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro é que as réplicas de elementos do judaísmo estão incorporadas à religiosidade iurdiana. As referências aos símbolos judaicos e a exaltação a Jerusalém são evidentes na arquitetura, nas roupagens, na linguagem e nos utensílios dispostos no templo. A propósito, a sede da IURD no Rio de Janeiro é chamada de Templo da Glória do Novo Israel. Como fazem com os textos bíblicos, apropriam-se do judaísmo de acordo com os seus interesses imediatos. Releituras transpostas para o contexto de guerra espiritual brasileira em que as religiões de matriz africanas são os inimigos a serem combatidos.

No tempo da política, em que existe uma eleição a ser vencida, por mais simbólica que seja a linguagem religiosa em versão iurdiana, tudo fica no registro da guerra espiritual em que os que não são por eles, supõem, são do diabo. Militância política é um tipo de incorporação do bem contra o mal. A campanha eleitoral iurdiana demoniza os adversários e os trata como inimigos.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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