Lula já deu amplas provas que não guarda mágoas. Quer seja para ganhar eleições ou para governar, distingue entre ética da convicção e ética da responsabilidade.
O presidente recebeu no Palácio do Planalto na quinta-feira (16) o bispo Samuel Ferreira da Assembleia de Deus, Convenção Madureira, que estava acompanhado do deputado federal e pastor Cezinha de Madureira (PSD-SP). Participaram também do encontro o advogado geral da União, Jorge Messias e a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT).
A oração do bispo Samuel Ferreira foi buscada para fortalecer a musculatura política eleitoral do Lula ou teve como alvo principal ungir o Jorge Messias como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)?
Lula não é ingênuo e não precisa ser alertado. Depois do Samuel Ferreira virão outros operadores do evangelho de mercado. Eles professam o liberalismo santo que depende de subsídios e perdões fiscais do Estado. Dependendo da liturgia do poder, se quebrantam e abrem o coração para deixar a luz do céu entrar.
Ética e justificativa
Max Weber baliza a ética da convicção enquanto a priorização dos princípios, o indivíduo que age/escolhe/decide a partir do que considera ser certo ou errado. Enquanto a ética da responsabilidade privilegia as consequências das ações.
Numa diferenciação concisa, enquanto a ética da convicção pergunta pelo que “deve” ser feito, a ética da responsabilidade indaga sobre o que “precisa” ser feito.
Nesta toada, gestores públicos não são conduzidos pelos seus princípios morais privados quando atuam institucionalmente, mas, pelos resultados públicos que suas escolhas vão gerar. A responsabilidade pública suplanta as preferências privadas.
Olga Benário, cônjuge de Luís Carlos Prestes, grávida, foi deportada em 1936 por Getúlio Vargas para a Alemanha Nazista. Morreu no campo de extermínio em 1942. Posteriormente, Luís Carlos Prestes apoiou Getúlio Vargas, noutra conjuntura, sob o argumento que não fazia política baseado nos seus ressentimentos pessoais, mas, orientado pelas situações concretas, visando o bem do povo.
A aliança da social-democracia tucana (PSDB) com o coronelismo carlista (PFL) vigorou entre 1994 e 2002. Fernando Henrique Cardoso (FHC), um dos principais artífices da redemocratização, aliou-se a Antônio Carlos Magalhães, notório representante do legado deixado pela ditadura. O sociólogo FHC conhece bem o realismo político de Maquiavel, notório saber teórico da distinção sugerida pelo Max Weber sobre critérios éticos. Portanto, houve o uso pragmático da ética da responsabilidade como justificativa.
Para as mudanças estruturais pretendidas pelos que se diziam vanguardistas, era necessário fazer concessões aos reacionários.
A partir da teoria weberiana, a ética do político é exclusivamente a ética da responsabilidade.
Repercussões
Jornalistas especializados que cobrem as tramas políticas de setores evangélicos para a grande imprensa analisaram o encontro do Lula com o bispo Samuel Ferreira como numericamente expressivo. Dessa vez, não foi com pastores “esquerdistas” de pequenos rebanhos.
O clã Ferreira domina uma das maiores estruturas eclesiásticas voltada para os evangélicos, pastores de multidões, donos de bancadas no legislativo, beneficiários de concessões de radiodifusão, empresários empreendedores bem-sucedidos.
Na cobertura da dita grande imprensa ficou nítido que quando os adultos querem conversar coisas sérias, ou testar orações de poder, as crianças são convidadas a saírem da sala.
Em recente entrevista a TV Fórum, o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakai, revelou que é advogado do bispo Samuel Ferreira. Rasgou elogios ao religioso, que segundo ele, possui extraordinário faro político. Kakai manifestou na entrevista a sua empolgação em ver o bispo abraçado ao presidente, considerou a foto como extremamente significativa. Ficou suposto que o famoso e influente advogado quando olha para os evangélicos presta especial atenção no potencial eleitoral do rebanho. A viabilidade eleitoral do Lula em 2026, segundo ele, passa pela capacidade de atrair os grandes eleitores do mercado da fé. Kakai, no puro suco do realismo político, às favas para os valores miúdos de gente pequena que não forma multidões.
Amém?
Evangélicos que se orientam por princípios e valores, ainda que republicanos e democráticos, vivenciam uma fé incapaz de mover montanhas. Essa visão depreciativa geralmente rotula os resistentes como “evangélicos progressistas” que não possuem moedas de troca para conversar na sala dos adultos.
Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, enquanto pastores “insignificantes” de pequenos rebanhos seguiam as orientações das autoridades sanitárias e científicas e mantinham os templos fechados, o lobby dos evangélicos contra o fechamento das igrejas era orquestrado pelos pastores das megaigrejas. O Samuel Ferreira foi uma das principais vozes de tal lobby.
Alguns evangélicos que não se dobraram ao bolsonarismo e se pronunciaram foram enxotados das suas congregações com crueldade.
Os crentes que não cederam aos mercadores da fé perderam emprego, perderam bolsas de estudo dos filhos nos colégios e faculdades confessionais, foram expulsos dos grupos do zap, expulsos dos grupos jovens da igreja, impedidos de cantar/tocar nos grupos de louvor, ridicularizados nos sermões dominicais, patrulhados quanto ao que ensinavam ou escreviam, desconvidados para pregar e desestimulados a permanecer na comunidade de fé.
Enquanto isso, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), em 12 de junho de 2021, então presidente da Frente Parlamentar Evangélica e vice-líder do governo no Congresso, participou da “Motociata Acelera para Cristo” na garupa do presidente Jair Bolsonaro. Influenciou na escolha do “ministro terrivelmente evangélico”, André Mendonça, para o STF.
Agora que as coisas se ajeitaram e há uma aparente e tímida desbolsonarização das igrejas, vamos dizer aos irmãos e irmãs que resistiram que perdoar é melhor que ressentir. Basta um texto bíblico mal enjambrado para fingir normalidade, legitimar a liderança dos vendilhões dos templos como que suas orações poderosas cobrissem multidões de pecados e resultassem em milhões de eleitores.
O grupo político controlado pelo bispo Samuel Ferreira usa a Bíblia para obter adesões políticas. Usa o púlpito para realizar conversões eleitorais e manter a sua bancada no Congresso Nacional. Usa orações fortes para ganhar bênçãos de Deus e concessões do Estado. Eventualmente, quando conveniente, presenteia presidentes, governadores e prefeitos com exemplares da Bíblia, com capas duras personalizadas.
A persuasão religiosa para alcançar interesses políticos aprendeu com o pai, bispo Manoel Ferreira, presidente vitalício da Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil e bispo primaz das Assembleias de Deus Ministério de Madureira.
Periodicamente o clã Ferreira testa o poder da oração. Lula será apoiado pelo grupo nas eleições do ano que vem? Jorge Messias vai emplacar como ministro do STF? Cezinha de Madureira, após montar na garupa de Bolsonaro, vai alçar voos mais altos num eventual quarto mandato do Lula? O tempo dirá. O poder da oração do bispo Samuel Ferreira é um mistério.
Os vendilhões dos templos se reinventam.
Ao que tudo indica, o marketing político voltado para incensar o Lula nas eleições do ano que vem vai rifar os evangélicos que não movem montanhas, ridicularizados pelos jornalistas especializados com a pecha de “evangélicos progressistas” que não mobilizam multidões. Por outro lado, vai aclamar e legitimar lideranças que transformaram casas de oração em covil de salteadores.
A relação entre o pragmatismo político e a hipocrisia religiosa é libidinosa.
O texto contém um pouco de ironia… e muita dor.