O alcoolismo visto a partir das igrejas evangélicas nas favelas cariocas

No território em que drogas ilícitas são comercializadas para o pessoal do asfalto, o consumo acessível e abusivo do álcool faz as suas vítimas caseiras nas favelas.
Não vai aqui qualquer censura moral, mas perplexidade social no trato da pauta da saúde pública.
Muitos preferem romantizar a favela como lugar libertário das camadas populares. Guetos de resistência. De fato, são territórios de potência social e resistência cultural.
Contudo, existe um problema concreto de saúde pública que não podemos tratar como tabu nem deixar quieto para não ferir sensibilidades como se qualquer sinalização fosse resvalar na moralidade religiosa.
O alcoolismo está entranhado e naturalizado no jeito de ser favela no Rio 40 graus. Os males acarretados são visíveis e trazem muito, muito sofrimento!
Não estou falando de alguém que se excedeu, vai para casa dormir e no dia seguinte acorda com uma dorzinha de cabeça suportável. Sequer cabe qualquer censura ao encontro de amigos que celebram e brindam juntos a vida numa roda de samba ou baile funk. Não é disso que se trata.
Tenho em mente pessoas adoecidas que precisam no dia seguinte beber mais para esquecer a noite passada. Gente que perdeu a saúde e o rumo. Essas precisam de ajuda médica, psicológica, social e espiritual.
Sabem que sucumbiram e não têm forças para saírem sozinhas da dependência. Envergonhadas, evitam os olhares e a convivência de gente que as ama.
Na cidade do Rio de Janeiro, o atendimento em Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde da Prefeitura pretende oferecer a atenção primária em saúde. Talvez existam programas específicos para contemplar a questão do alcoolismo nas favelas cariocas. Desconheço.
Lembrando que por ajuda espiritual não estamos falando necessariamente de instituições religiosas, mas por tratar-se de territórios com forte concentração de espaços religiosos, parece-me razoável envolver esses atores na trama social em questão.
Eis aí um ótimo exemplo de parceria entre igreja e Estado que em nada fere o princípio do Estado laico. Mantidas as distâncias e independências, haveria a parceria pelo bem-comum. Não só de hospitalização e medicalização vive a pessoa com dificuldades com o álcool, mas de todos os gestos possíveis de atenção e acolhimento.
Políticas públicas que não se convertem em proselitismo religioso, muito menos em proselitismo político.
O pedido de oração em torno do problema do alcoolismo é recorrente nos encontros das igrejas evangélicas. Mulheres pedem pelos seus parceiros, pais e filhos. Filhos pedem pelos seus pais e amigos. Homens adultos intercedem pelas suas mães, companheiras, filhas e netas. Crianças frequentemente citam adultos do seu entorno familiar que estão sofrendo com bebidas alcoólicas.
Enfim, arrisco dizer que o sofrimento com o alcoolismo é o motivo que leva muitas pessoas a buscarem ajuda nas igrejas evangélicas nas favelas cariocas.
O Balbino vivia nas ruas. Criado numa rígida e amorosa família da Assembleia de Deus, ele saiu de casa jovem quando percebeu que todos estavam afetados com a sua dependência. Deixou os estudos e não conseguia trabalhar regularmente. Foi para as ruas. Saiu de casa como filho pródigo se sentindo indigno do amor dos pais. Assim viveu por anos, perambulando, guardando carros estacionados e transformando gorjetas em cachaça.
Num dia de semana comum, numa lojinha de portas-abertas, umas dez pessoas realizavam um culto ao meio-dia. A falta da roupagem religiosa o atraiu e da calçada assistiu à informal reunião de poucos cantos e algumas orações.
No dia seguinte, encorajado por uma moça que lhe deu um abraço, resolveu entrar. Trôpego, arrastou algumas cadeiras antes de sentar-se. Sabia cantar os cânticos daqueles evangélicos. Na hora da reflexão bíblica trazida pelo pastor, ele dormiu de roncar alto. Um sono pesado.
E assim aconteceu por alguns dias. No fim de um dos cultos, perguntaram se ele queria tomar um banho e trocar de roupas. Constrangido, aceitou. Após o banho, almoçou com os irmãos. Foi assim estabelecido um novo padrão. Balbino chegava bêbado, tropeçando nas cadeiras, cantava, sentava-se e dormia durante o sermão. Acordava no fim do culto, tomava um banho, almoçava e conversava.
Depois de alguns meses, um voluntário do pequeno grupo perguntou se ele queria sair das ruas. Disse que sim, mas não sabia como. Os presentes comunicaram que acreditavam nele e iam colocá-lo numa hospedaria.
Resumindo: a vida do Balbino mudou. Dignidade retomada, procurou ajuda. Trabalhava como flanelinha no entorno do Instituto Nacional de Câncer (INCA), localizado na Praça Cruz Vermelha, no centro do Rio de Janeiro. Um médico percebeu a transformação e lhe ofereceu ajuda, indicação para um atendimento especializado. Formou-se a rede de apoio e os irmãos da igreja conseguiram encaminhá-lo para o atendimento psicológico social de uma universidade. Para além dessas frentes, Balbino não deixava de participar das reuniões dos Alcoólicos Anônimos, Grupo Senador Dantas, Centro.
Precisou deixar o quarto da hospedaria. Conheceu a Célia e se apaixonou. Casaram-se. Foi morar com ela. Conseguiu o registro de guardador de carros. Colete azul, talão oficial, não gostava que o chamássemos de flanelinha.
Chamou atenção pela sua força de vontade de vencer o alcoolismo. Chamava muita atenção pela responsabilidade em cuidar dos carros deixados sob a sua responsabilidade. Uma dessas clientes é dona de um restaurante e o convidou para trabalhar para ela. Jamais imaginava que teria um novo carimbo na sua surrada Carteira de Trabalho. Define-se como um faz tudo no restaurante, embora tenha se especializado no preparo e apresentação das saladas.
Diz ele que faz poesia com folhas!
No sábado, 30 de novembro de 2024, já era tarde quando recebi a chamada do Balbino. Apreensivo, atendi.
Ele estava rouco. Não conseguia falar direito. Percebeu minha tensão. Disse ele que estava tudo bem, continuava limpo. Porém, não conseguia ficar sóbrio.
O único porre que tomou foi o de alegria. O seu Botafogo sagrou-se campeão da Copa Libertadores naquela noite. Resolveu extravasar ligando para zoar o seu velho amigo flamenguista.
P.S. O Balbino deu as devidas autorizações ao colunista para contar a sua experiência e publicar a sua foto.