Primo Levi e Adaptação a Auschwitz Ética e Desumanização

Foto: Primo Levi, Montagem baseada em imagens do acervo Getty

O livro (É isto um Homem?) cumpre com duas finalidades: pessoal (liberação interior) e social (registro histórico para que jamais volte a acontecer coisas semelhantes). Para que jamais volte a acontecer, ainda que seja desagradável, não podemos deixar de falar. Temos o dever ético de trazer à memória o que alguns preferem esquecer ou dissimular.

Um outro título possível para esta obra seria: Meu nome é 174.517. Vistos numa mesma perspectiva – É isto um Homem? / Meu nome é 174.517 –, trazem um mesmo sentido, a saber, a desumanização. O relato de Primo Levi nos convence de que campo de extermínio tem um sentido amplo, não só a morte, mas antes, exterminar tudo o que faz uma pessoa “ser humana”.

Desde que foi detido pela milícia fascista em 13 de dezembro de 1943 e levado ao campo de extermínio num vagão de carga, compreendeu que estava sendo tirado dele coisas mínimas, sem as quais não se podia sequer pensar nas fundamentais. A confusão que se estabelece: como classificar as coisas que compõem a vida em mínimas e fundamentais?

Sede, frio, fome e a humilhação. No vagão, sendo conduzido a um campo especializado em extermínio. Por mais execrável que seja, os primeiros capítulos da obra mostram o período de “adaptação” ao campo. As regras eram anunciadas aos berros e assimiladas ainda que não se soubesse decodificar a língua na qual fora anunciada. A degradação humana era tanta que logo se percebia que as relações sociais, mesmo entre os detidos, não obedeciam às normas gerais da civilidade. O mundo fora do gueto estava em guerra, o mundo dentro do gueto era um inferno a parte. O trabalho forçado consistia em erguer a estrutura promotora de mortes, mas, antes da asfixia fatal, importava extirpar o humano. Diante dos reveses, do desconforto, das muitas perguntas sem respostas, os recém-ingressos no campo iam se certificando de algo: Vous n’êtes pas à la maison.

Dentre as muitas coisas que foram aprendidas nos primeiros dias no campo de concentração, talvez uma das mais importantes foi apagar da mente o passado e parar de projetar o futuro. Era uma questão de sobrevivência. Tentar abrigo na lembrança era uma grande armadilha, pois o contraste com o presente mostraria que aquela experiência era desesperadora. Remeter-se ao passado levaria à constatação de que a única coisa que ainda não se havia perdido era a vida. Por outro lado, tentar abrigo no sonho, nas projeções futuras, era também uma armadilha, pois todas as evidências mostravam que não era possível projetar nem a hora seguinte. Olhar para o futuro era constatar que os nazistas haviam minado o caminho e que toda e qualquer trajetória passava pela vontade deles.

Como olhar para o horizonte se o horizonte fora apropriado pelos opressores?

O relato é realmente chocante na medida em que mostra o homem num estado animalesco, sem passado, sem futuro, apenas à espera do próximo bocado de comida. Nesta condição bestial, Levi relata-nos que seus hábitos de higiene sofreram colapso. O que importava naquelas condições o asseio pessoal?

Precisamos conhecer a história para sermos capazes de reconhecer o discurso autoritário que tem como princípio a desumanização. A reflexão proposta não tem a ver com opor politicamente direita/esquerda ou economicamente liberalismo/socialismo. Levi sugere outro contraponto: humano/desumano.

Nos Estados democráticos, as disputas entre adversários são comuns. Por isso mesmo existem instituições e regras para que haja na trama social o devido respeito pelas instituições e pelas pessoas. Adversários convivem e se respeitam. A maioria respeita a minoria, não tenta extirpá-la. Estado democrático de direito.

Enquanto que nos Estados de inspiração fascista/nazista, totalitários e autoritários, os adversários são transformados em inimigos que devem ser exterminados. Mas antes da asfixia fatal, os tiranos promovem processos de aniquilamento da dignidade humana. Antes de matar, humilham.

Que o relato de Primo Levi nos ajude a identificar os discursos e práticas que desqualificam a política, ridicularizam pessoas e exaltam o Estado policial que se impõe pela exaltação da violência. É típico da experiência nazista/fascista promover a polarização e classificar ou desqualificar as pessoas através do contraponto amigos/inimigos.

MÚSICA EM AUSCHWITZ: Ética e desumanização

As músicas executadas no campo de extermínio impunham o ritmo da marcha. Não havia vontade, nem vigor, muito menos a possibilidade de passos destoantes. Marchavam como autômatos. Só após as pessoas serem aniquiladas é que seriam levadas à morte. A extirpação da humanidade precedia a morte.

Ir e voltar do trabalho forçado no ritmo da música. Marcha fúnebre? Antes fosse! Marcha da aniquilação da vontade, coreografia dos homens desumanizados, dança dos embotados, teatro dos apagados, missa de corpo presente em que o defunto se desloca.

Levi esteve atento aos códigos simbólicos que vigoravam no grande palco de Auschwitz, o seu relato não se restringe à pura descrição, ele explora os sentidos, as linguagens que punham homens de diversos países e diversos idiomas sob uma mesma compreensão. Num termo por ele cunhado: torre de Babel.

A consideração de que houve em Auschwitz dias bons causa nos leitores um sentimento dúbio: temos a sensação de conforto, um tipo de intervalo do sofrimento, para logo depois concluir que tal dia excepcional servia para enfatizar o sofrimento ordinário.

Os algozes proporcionavam alívios esporádicos as suas vítimas e assim as induziam a abandonar os seus escudos internos. Quando expostas, eram surpreendidas com mais sofrimentos, pois as encontravam vulneráveis.

Danava-se quem se distraía e se humanizava.

Se este sentimento nos ocorre, muito mais contraditório foi para Levi e seus companheiros de desgraça. O dia foi considerado bom porque o sol apareceu depois de longo e penoso inverno. O dia pareceu especial porque conseguiram uma porção a mais de sopa. O dia bom foi um hiato, uma exceção, algo que revelou o quanto estavam desumanizados.

Estudar certos aspectos da alma humana pode ser penoso. O mergulho de Levi foi asfixiante. Ele examinou a alma humana em condições excepcionais e chegou à conclusão que erguer teorias sobre a natureza humana e julgá-la é uma tolice. Levi afirma com este livro que a ação humana só pode ser julgada individualmente, caso a caso.

Chocante, em termos dos valores, pensar que em condições tão adversas os párias do sofrimento organizaram uma sociedade de desiguais fundada no egoísmo. Funcionava no gueto uma “economia de mercado”. Havia moeda corrente, cunhada pela frieza humana e não pela alta temperatura dos afetos. Existiam posições de privilégios, os notáveis, os que conseguiram porções de sopa e pão a mais por estarem em posições estratégicas. Tinha o locus das negociações onde se podia observar os “ricos” e os pobres. Tratava-se de uma típica economia de mercado. Segundo o relato do autor, o mercado funcionava com uma lógica que era compartilhada pelos miseráveis judeus. Grupos de diversas nações se expressando em diversos idiomas, mas porque o faziam dentro do mesmo “mercado”, compartilhavam dos mesmos valores simbólicos.

Os homens estavam divididos em duas categorias: os que se salvam e os que se afogam. O marco divisor seria simplesmente a capacidade de sobrevivência. A solidão profunda a que cada um estava submetido os equiparava. Partiam de um patamar comum: o vazio. Então, deduzem alguns, na luta pela vida sucumbem os mais fracos e sobrevivem os mais fortes. Vigorava o sinistro processo de seleção natural.

Os afogados seriam aqueles que eram inaptos ou por azar não se adaptaram ao terrível mundo do campo de concentração. Multidão anônima continuamente renovada e continuamente igual. Uma massa humana de homens opacos, sem brilho, cabisbaixos, esgotados, apagados.

O caminho da salvação podia se dar através de uma luta incessante pela vida, tudo o mais era abafado uma vez que o instinto de vida se impunha. Isso ocorria através da ocupação de postos de trabalho estratégicos, eram funções que os punham – entre muitas aspas – na condição de “proeminentes judeus”.

Nos sistemas totalitários, o projeto sempre foi massificar. Não há povo, comunidade ou sociedade. Só há massa terrivelmente humana.

O fundo musical ininterrupto não era uma expressão de humanização, mas um mecanismo de tortura. Perturbar até enlouquecer. Somente quem se robotizava não enlouquecia.

Robotizados, esgotados, apagados, opacos, emudecidos, embrutecidos e desumanos. Aderir à massificação nos campos de extermínio transformava-se em estratégia de sobrevivência. Por mais contraditório que pareça, aderir à massificação e à robotização sem prestar atenção na música era sinal de sanidade, sinal de vida, resquício de humanidade.

ASTÚCIA EM AUSCHWITZ: Ética e mentira

O empenho de Primo Levi no livro Os afogados e os sobreviventes é responder as muitas questões que foram suscitadas nos anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial e à queda de Hitler. Especificamente, responde às muitas reações aos relatos referentes ao extermínio de milhões de vidas pelo nazismo e suas derivações.

Um mecanismo psicológico que serve tanto aos opressores como aos oprimidos: a eliminação da verdade dolorosa pela “verdade” consolatória. Subjacente a este mecanismo está a constatação de uma terrível tragédia humana. Sua escolha foi por encarar as lembranças amargas sendo que elas tinham poder terapêutico para ele e serviam como contundente aviso para as futuras gerações.

Tratando sobre a natureza humana, refere-se a um componente importante – o poder. Na situação de miserabilidade absoluta, de desumanização, havia privilegiados. Pessoas que por razões e motivações diversas se beneficiavam ou se safavam. Os privilegiados dentro de um campo de semimortos. A verdade é que é próprio das sociedades humanas o jogo do poder, as artimanhas para o autobenefício.

Primo Levi não entra no mérito moral: como julgá-los estando eles na situação em que estavam?

Não apenas em Auschwitz, algumas pessoas são extremamente hábeis quando os seus interesses estão em jogo. Mentem, dissimulam, calam, fingem, traem, enfim, fazem o necessário em troca de benefícios pessoais.

Primo Levi lista quatro nomes de pessoas que agiram com extrema astúcia para sobreviver no campo de extermínio. Como julgá-las se o fizeram para sobreviver?

Schepschel – Calou frente à injustiça cometida contra um companheiro, pois tal injustiça redundou para ele em um posto de trabalho privilegiado (lavador de panelas). Calou para usurpar o lugar do companheiro.

Alfred L. – Tenacidade para se distinguir da multidão mantendo sempre uma aparência de proeminência. Conseguiu forjar planos de longo alcance e assim alcançou um posto importante, ainda que no comando químico.

Elias Lindzin – Um ser adaptado ao campo de concentração devido as suas habilidades físicas e debilidade mental. Um bruto por excelência que naquelas condições se destacava (Elias sobreviveu à destruição externa, porque é fisicamente indestrutível; resistiu à aniquilação interna porque é demente).

Henri – Pragmático, dissimulado, fechado como uma ostra, consistente no que diz respeito a sua estratégia de sobrevivência – “o jeito”, a compaixão e o roubo – instrumentalizava a tudo e a todos (Henri é desumanamente astucioso).

Primo Levi pontua o quão controverso seria classificar os afogados e os sobreviventes. No que se referia a si mesmo, atribui à casualidade o fato de não ter sido selecionado para o extermínio na câmara de gás. Atribui também ao contato mantido com Lourenço, italiano, trabalhador externo que o supriu por seis meses com o resto de suas refeições. O suprimento não foi apenas material, Levi atribuiu a Lourenço o suprimento de humanidade e de civilidade que o manteve vivo e humano.

Ficam evidentes as referências à psicanálise para considerar os mecanismos de defesa que são criados por aqueles que precisam conter a invasão das lembranças difíceis. Levi analisa como os implicados no Terceiro Reich sobreviviam. Por que não sucumbem ante o peso das atrocidades? A resposta novamente faz uso dos recursos da psicanálise: falsificação da memória, falsificação da realidade, fuga da realidade. Trata-se de mecanismo de mentira autoimposta, repetida exaustivamente, que com o tempo acaba tornando-se uma “verdade” para quem a diz. Os opressores se eximiam de culpa usando o argumento de que estavam cumprindo ordens superiores. Considerando que estavam num Estado opressor e totalitário, eram vogais de um sistema hierárquico, o que fizeram foi dentro de uma conjuntura que os constrangia.

Não precisam estar vivendo nos extremos, basta uma sinalização dos donos do poder para que elas mudem as suas convicções. Frias, calculistas e bem-sucedidas. Articuladas, bem acompanhadas e prósperas.

Estratégia de sobrevivência em que os interesses pessoais ditam os seus comprometimentos públicos. Calam e consentem diante do arbítrio. Calam e consentem quando injustiças são cometidas. Calam e consentem quando mentiras são ditas e robôs reverberam.

Apego ao poder que as fazem elaborar estratégias em que o se distinguir da multidão tem a ver com procura por privilégios pessoais.

Sem culpas, mas com cálculos, instrumentalizam a tudo e a todos a fim de garantir os seus interesses. Desumanamente astuciosas. Não apenas em Auschwitz…

AUSCHWITZ RETORNARÁ? Ética e poder

O livro (É isto um Homem?) cumpre com duas finalidades: pessoal (liberação interior) e social (registro histórico para que jamais volte a acontecer coisas semelhantes). Para que jamais volte a acontecer, ainda que seja desagradável, não podemos deixar de falar. Temos o dever ético de trazer à memória o que alguns preferem esquecer ou dissimular.

Um outro título possível para esta obra seria: Meu nome é 174.517. Vistos numa mesma perspectiva – É isto um Homem? / Meu nome é 174.517 –, trazem um mesmo sentido, a saber, a desumanização. O relato de Primo Levi nos convence de que campo de extermínio tem um sentido amplo, não só a morte, mas antes, exterminar tudo o que faz uma pessoa “ser humana”.

Desde que foi detido pela milícia fascista em 13 de dezembro de 1943 e levado ao campo de extermínio num vagão de carga, compreendeu que estava sendo tirado dele coisas mínimas, sem as quais não se podia sequer pensar nas fundamentais. A confusão que se estabelece: como classificar as coisas que compõem a vida em mínimas e fundamentais?

Sede, frio, fome e a humilhação. No vagão, sendo conduzido a um campo especializado em extermínio. Por mais execrável que seja, os primeiros capítulos da obra mostram o período de “adaptação” ao campo. As regras eram anunciadas aos berros e assimiladas ainda que não se soubesse decodificar a língua na qual fora anunciada. A degradação humana era tanta que logo se percebia que as relações sociais, mesmo entre os detidos, não obedeciam às normas gerais da civilidade. O mundo fora do gueto estava em guerra, o mundo dentro do gueto era um inferno a parte. O trabalho forçado consistia em erguer a estrutura promotora de mortes, mas, antes da asfixia fatal, importava extirpar o humano. Diante dos reveses, do desconforto, das muitas perguntas sem respostas, os recém-ingressos no campo iam se certificando de algo: Vous n’êtes pas à la maison.

Dentre as muitas coisas que foram aprendidas nos primeiros dias no campo de concentração, talvez uma das mais importantes foi apagar da mente o passado e parar de projetar o futuro. Era uma questão de sobrevivência. Tentar abrigo na lembrança era uma grande armadilha, pois o contraste com o presente mostraria que aquela experiência era desesperadora. Remeter-se ao passado levaria à constatação de que a única coisa que ainda não se havia perdido era a vida. Por outro lado, tentar abrigo no sonho, nas projeções futuras, era também uma armadilha, pois todas as evidências mostravam que não era possível projetar nem a hora seguinte. Olhar para o futuro era constatar que os nazistas haviam minado o caminho e que toda e qualquer trajetória passava pela vontade deles.

Como olhar para o horizonte se o horizonte fora apropriado pelos opressores?

O relato é realmente chocante na medida em que mostra o homem num estado animalesco, sem passado, sem futuro, apenas à espera do próximo bocado de comida. Nesta condição bestial, Levi relata-nos que seus hábitos de higiene sofreram colapso. O que importava naquelas condições o asseio pessoal?

Precisamos conhecer a história para sermos capazes de reconhecer o discurso autoritário que tem como princípio a desumanização. A reflexão proposta não tem a ver com opor politicamente direita/esquerda ou economicamente liberalismo/socialismo. Levi sugere outro contraponto: humano/desumano.

Nos Estados democráticos, as disputas entre adversários são comuns. Por isso mesmo existem instituições e regras para que haja na trama social o devido respeito pelas instituições e pelas pessoas. Adversários convivem e se respeitam. A maioria respeita a minoria, não tenta extirpá-la. Estado democrático de direito.

Enquanto que nos Estados de inspiração fascista/nazista, totalitários e autoritários, os adversários são transformados em inimigos que devem ser exterminados. Mas antes da asfixia fatal, os tiranos promovem processos de aniquilamento da dignidade humana. Antes de matar, humilham.

Que o relato de Primo Levi nos ajude a identificar os discursos e práticas que desqualificam a política, ridicularizam pessoas e exaltam o Estado policial que se impõe pela exaltação da violência. É típico da experiência nazista/fascista promover a polarização e classificar ou desqualificar as pessoas através do contraponto amigos/inimigos.

Ética e desumanização

As músicas executadas no campo de extermínio impunham o ritmo da marcha. Não havia vontade, nem vigor, muito menos a possibilidade de passos destoantes. Marchavam como autômatos. Só após as pessoas serem aniquiladas é que seriam levadas à morte. A extirpação da humanidade precedia a morte.

Ir e voltar do trabalho forçado no ritmo da música. Marcha fúnebre? Antes fosse! Marcha da aniquilação da vontade, coreografia dos homens desumanizados, dança dos embotados, teatro dos apagados, missa de corpo presente em que o defunto se desloca.

Levi esteve atento aos códigos simbólicos que vigoravam no grande palco de Auschwitz, o seu relato não se restringe à pura descrição, ele explora os sentidos, as linguagens que punham homens de diversos países e diversos idiomas sob uma mesma compreensão. Num termo por ele cunhado: torre de Babel.

A consideração de que houve em Auschwitz dias bons causa nos leitores um sentimento dúbio: temos a sensação de conforto, um tipo de intervalo do sofrimento, para logo depois concluir que tal dia excepcional servia para enfatizar o sofrimento ordinário.

Os algozes proporcionavam alívios esporádicos as suas vítimas e assim as induziam a abandonar os seus escudos internos. Quando expostas, eram surpreendidas com mais sofrimentos, pois as encontravam vulneráveis.

Danava-se quem se distraía e se humanizava.

Se este sentimento nos ocorre, muito mais contraditório foi para Levi e seus companheiros de desgraça. O dia foi considerado bom porque o sol apareceu depois de longo e penoso inverno. O dia pareceu especial porque conseguiram uma porção a mais de sopa. O dia bom foi um hiato, uma exceção, algo que revelou o quanto estavam desumanizados.

Estudar certos aspectos da alma humana pode ser penoso. O mergulho de Levi foi asfixiante. Ele examinou a alma humana em condições excepcionais e chegou à conclusão que erguer teorias sobre a natureza humana e julgá-la é uma tolice. Levi afirma com este livro que a ação humana só pode ser julgada individualmente, caso a caso.

Chocante, em termos dos valores, pensar que em condições tão adversas os párias do sofrimento organizaram uma sociedade de desiguais fundada no egoísmo. Funcionava no gueto uma “economia de mercado”. Havia moeda corrente, cunhada pela frieza humana e não pela alta temperatura dos afetos. Existiam posições de privilégios, os notáveis, os que conseguiram porções de sopa e pão a mais por estarem em posições estratégicas. Tinha o locus das negociações onde se podia observar os “ricos” e os pobres. Tratava-se de uma típica economia de mercado. Segundo o relato do autor, o mercado funcionava com uma lógica que era compartilhada pelos miseráveis judeus. Grupos de diversas nações se expressando em diversos idiomas, mas porque o faziam dentro do mesmo “mercado”, compartilhavam dos mesmos valores simbólicos.

Os homens estavam divididos em duas categorias: os que se salvam e os que se afogam. O marco divisor seria simplesmente a capacidade de sobrevivência. A solidão profunda a que cada um estava submetido os equiparava. Partiam de um patamar comum: o vazio. Então, deduzem alguns, na luta pela vida sucumbem os mais fracos e sobrevivem os mais fortes. Vigorava o sinistro processo de seleção natural.

Os afogados seriam aqueles que eram inaptos ou por azar não se adaptaram ao terrível mundo do campo de concentração. Multidão anônima continuamente renovada e continuamente igual. Uma massa humana de homens opacos, sem brilho, cabisbaixos, esgotados, apagados.

O caminho da salvação podia se dar através de uma luta incessante pela vida, tudo o mais era abafado uma vez que o instinto de vida se impunha. Isso ocorria através da ocupação de postos de trabalho estratégicos, eram funções que os punham – entre muitas aspas – na condição de “proeminentes judeus”.

Nos sistemas totalitários, o projeto sempre foi massificar. Não há povo, comunidade ou sociedade. Só há massa terrivelmente humana.

O fundo musical ininterrupto não era uma expressão de humanização, mas um mecanismo de tortura. Perturbar até enlouquecer. Somente quem se robotizava não enlouquecia.

Robotizados, esgotados, apagados, opacos, emudecidos, embrutecidos e desumanos. Aderir à massificação nos campos de extermínio transformava-se em estratégia de sobrevivência. Por mais contraditório que pareça, aderir à massificação e à robotização sem prestar atenção na música era sinal de sanidade, sinal de vida, resquício de humanidade.

Ética e mentira

O empenho de Primo Levi no livro Os afogados e os sobreviventes é responder as muitas questões que foram suscitadas nos anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial e à queda de Hitler. Especificamente, responde às muitas reações aos relatos referentes ao extermínio de milhões de vidas pelo nazismo e suas derivações.

Um mecanismo psicológico que serve tanto aos opressores como aos oprimidos: a eliminação da verdade dolorosa pela “verdade” consolatória. Subjacente a este mecanismo está a constatação de uma terrível tragédia humana. Sua escolha foi por encarar as lembranças amargas sendo que elas tinham poder terapêutico para ele e serviam como contundente aviso para as futuras gerações.

Tratando sobre a natureza humana, refere-se a um componente importante – o poder. Na situação de miserabilidade absoluta, de desumanização, havia privilegiados. Pessoas que por razões e motivações diversas se beneficiavam ou se safavam. Os privilegiados dentro de um campo de semimortos. A verdade é que é próprio das sociedades humanas o jogo do poder, as artimanhas para o autobenefício.

Primo Levi não entra no mérito moral: como julgá-los estando eles na situação em que estavam?

Não apenas em Auschwitz, algumas pessoas são extremamente hábeis quando os seus interesses estão em jogo. Mentem, dissimulam, calam, fingem, traem, enfim, fazem o necessário em troca de benefícios pessoais.

Primo Levi lista quatro nomes de pessoas que agiram com extrema astúcia para sobreviver no campo de extermínio. Como julgá-las se o fizeram para sobreviver?

Schepschel – Calou frente à injustiça cometida contra um companheiro, pois tal injustiça redundou para ele em um posto de trabalho privilegiado (lavador de panelas). Calou para usurpar o lugar do companheiro.

Alfred L. – Tenacidade para se distinguir da multidão mantendo sempre uma aparência de proeminência. Conseguiu forjar planos de longo alcance e assim alcançou um posto importante, ainda que no comando químico.

Elias Lindzin – Um ser adaptado ao campo de concentração devido as suas habilidades físicas e debilidade mental. Um bruto por excelência que naquelas condições se destacava (Elias sobreviveu à destruição externa, porque é fisicamente indestrutível; resistiu à aniquilação interna porque é demente).

Henri – Pragmático, dissimulado, fechado como uma ostra, consistente no que diz respeito a sua estratégia de sobrevivência – “o jeito”, a compaixão e o roubo – instrumentalizava a tudo e a todos (Henri é desumanamente astucioso).

Primo Levi pontua o quão controverso seria classificar os afogados e os sobreviventes. No que se referia a si mesmo, atribui à casualidade o fato de não ter sido selecionado para o extermínio na câmara de gás. Atribui também ao contato mantido com Lourenço, italiano, trabalhador externo que o supriu por seis meses com o resto de suas refeições. O suprimento não foi apenas material, Levi atribuiu a Lourenço o suprimento de humanidade e de civilidade que o manteve vivo e humano.

Ficam evidentes as referências à psicanálise para considerar os mecanismos de defesa que são criados por aqueles que precisam conter a invasão das lembranças difíceis. Levi analisa como os implicados no Terceiro Reich sobreviviam. Por que não sucumbem ante o peso das atrocidades? A resposta novamente faz uso dos recursos da psicanálise: falsificação da memória, falsificação da realidade, fuga da realidade. Trata-se de mecanismo de mentira autoimposta, repetida exaustivamente, que com o tempo acaba tornando-se uma “verdade” para quem a diz. Os opressores se eximiam de culpa usando o argumento de que estavam cumprindo ordens superiores. Considerando que estavam num Estado opressor e totalitário, eram vogais de um sistema hierárquico, o que fizeram foi dentro de uma conjuntura que os constrangia.

Não precisam estar vivendo nos extremos, basta uma sinalização dos donos do poder para que elas mudem as suas convicções. Frias, calculistas e bem-sucedidas. Articuladas, bem acompanhadas e prósperas.

Estratégia de sobrevivência em que os interesses pessoais ditam os seus comprometimentos públicos. Calam e consentem diante do arbítrio. Calam e consentem quando injustiças são cometidas. Calam e consentem quando mentiras são ditas e robôs reverberam.

Apego ao poder que as fazem elaborar estratégias em que o se distinguir da multidão tem a ver com procura por privilégios pessoais.

Sem culpas, mas com cálculos, instrumentalizam a tudo e a todos a fim de garantir os seus interesses. Desumanamente astuciosas. Não apenas em Auschwitz…

Ética e poder

A zona cinzenta do privilégio – protekeja – tem múltiplas raízes. Se fôssemos resumir com uma palavra apenas, seria: poder. Em termos práticos, analisando os campos de concentração e o extermínio de milhares de vidas, pensar que os privilegiados participaram, colaboraram, é uma questão controversa. Julgar essas pessoas – vítimas – como desumanas, torna-se uma impossibilidade. No entanto, podemos dizer que os protekeja foram intoxicados pelo poder que dispunham. As relações sociais vividas no lager, inclusive a relação de poder, em certa medida podem ser uma amostragem da humanidade. Claro que a situação era excepcional. Mas importa ressaltar a diversidade quanto a classes sociais e quanto à diversidade de nacionalidades ali representadas.

A reflexão de Primo Levi sobre “zona cinzenta” refere-se ao campo de concentração bem como à civilização como um todo. Pessoas que aproveitam as chances que têm para se aproximarem do núcleo do poder e se servirem dele como colaboradores privilegiados. O poder entorpece. Os valores são esquecidos se isso for conveniente. A zona cinzenta é uma zona de ambiguidades. Levi refere-se à síndrome do poder, que em resumo: desconhece o mundo à volta, desconhece o semelhante, desconhece a si mesmo; só conhece o poder. Se levado em conta que estavam numa situação excepcional, talvez se conclua que assegurar uma fatia de poder era o mesmo que assegurar a sobrevivência. Situação ambígua, por isso, zona cinzenta.

Levi desenvolve o tema da culpa. Paradoxal, após a libertação, alguém ser acometido de culpa. Ter resistido a todas as atrocidades e sobrevivido, enquanto que tantos foram afogados… Levi não aceita as explicações que põem a providência divina ou a maior aptidão humana (seleção natural) como motivos da divisão do grupo de oprimidos entre sobreviventes e afogados.

Não seria razoável pensar que os piores sobreviveram porque foram incapazes de resistir, instalaram-se em postos estratégicos de trabalho e colaboraram com o sistema. Teriam sobrevivido porque dissimularam, só pensaram em si e ainda se adaptaram às condições desumanas. Enquanto que os “afogados” mantiveram a dignidade, não deixaram que apagassem a centelha humana que neles havia e por isso morreram.

Levi confere à sorte a sua sobrevivência, e não à força ou à habilidade de manter-se vivo. Na sua evidente tentativa de contrastar passado/presente/futuro, evoluiu no seu argumento: Auschwitz retornará?

Exatamente com o objetivo de deixar essa pergunta em destaque que o livro foi escrito. O alerta é para que todo cuidado seja tomado para que as condições sociais objetivas que foram receptivas ao sistema nazista sejam extirpadas. A posição de Levi é que é improvável que algo parecido com Auschwitz ocorra, mas não é impossível.

Com o distanciamento de quatro décadas dos fatos ocorridos no campo de concentração, Levi tece alguns comentários sobre as privações e violências sofridas. O que ocorreu foi uma violência inútil. Fazer sofrer sem que houvesse um motivo convincente a não ser fazer sofrer.

Degradar o ser humano a tal ponto de não haver pesar em matá-lo (É isto um homem?). Total desprezo pelos detidos que era evidenciado assim que entravam nos vagões.  Tratava-se de mecanismos metódicos de fazer sofrer. Evacuar em público. A nudez, a falta de colher, a tatuagem, expressões do mesmo constrangimento. O “inimigo” não devia apenas morrer, mas sofrer, morrer no tormento.

O livro Os afogados e os sobreviventes trata de uma discussão sobre os primeiros relatos dos que foram testemunhas oculares do extermínio nos campos de concentração. Passadas quatro décadas, muito foi lido, muitos foram os processos em que os responsáveis foram julgados, enfim, era uma perspectiva diferente dos primeiros relatos.

Ainda na sua discussão teórica depois da experiência do campo de concentração, Levi observa que havia uma proliferação de estereótipos produzidos por uma visão equivocada da história. Na sua atividade de divulgar as sombrias experiências de sobrevivente de Auschwitz, deparou-se com as perguntas: Por que não fugiram? Por que não se rebelaram? Por que não escaparam “antes”?

Essas são perguntas que demonstram que não se está atinando para a especificidade histórica dos campos de concentração nazista. Perguntas que revelam desconhecimento, pois houve fugas, rebeliões e casos em que pessoas fugiram antes do cerco.

É necessário o trabalho dos historiadores para que as gerações do presente e do futuro tenham um olhar fidedigno do que foi Auschwitz. Levi temia pela proliferação de uma versão histórica estereotipada. Alerta para a tendência de atenuar o terror do extermínio e da desumanização, olhando-os em termos do presente.

Justamente o mecanismo que a extrema-direita utiliza atualmente. Distorcem as interpretações dos fatos históricos, desqualificam os historiadores, substituem a robusta historiografia por teorias conspiratórias sensacionalistas. Mentiras que são ditas por gurus embusteiros, impulsionadas cladestinamente nas redes sociais por empresários patriotas e devidamente repercutidas por robôs pagos. Promovem vilões em heróis, criminosos em filantropos, falsos profetas em apóstolos, torturadores em estadistas, milícias em polícia, advogado de acusação em juiz e candidato a ditador em presidente.

A reflexão de Primo Levi sobre “zona cinzenta” refere-se ao campo de concentração bem como à civilização como um todo. Pessoas que aproveitam as chances que têm para se aproximarem do núcleo do poder e se servirem dele como colaboradores privilegiados. O poder entorpece. Os valores são esquecidos se isso for conveniente. A zona cinzenta é uma zona de ambiguidades. Levi refere-se à síndrome do poder, que em resumo: desconhece o mundo à volta, desconhece o semelhante, desconhece a si mesmo; só conhece o poder. Se levado em conta que estavam numa situação excepcional, talvez se conclua que assegurar uma fatia de poder era o mesmo que assegurar a sobrevivência. Situação ambígua, por isso, zona cinzenta.

A zona cinzenta do privilégio – protekeja – tem múltiplas raízes. Se fôssemos resumir com uma palavra apenas, seria: poder. Em termos práticos, analisando os campos de concentração e o extermínio de milhares de vidas, pensar que os privilegiados participaram, colaboraram, é uma questão controversa. Julgar essas pessoas – vítimas – como desumanas, torna-se uma impossibilidade. No entanto, podemos dizer que os protekeja foram intoxicados pelo poder que dispunham. As relações sociais vividas no lager, inclusive a relação de poder, em certa medida podem ser uma amostragem da humanidade. Claro que a situação era excepcional. Mas importa ressaltar a diversidade quanto a classes sociais e quanto à diversidade de nacionalidades ali representadas.

Levi desenvolve o tema da culpa. Paradoxal, após a libertação, alguém ser acometido de culpa. Ter resistido a todas as atrocidades e sobrevivido, enquanto que tantos foram afogados… Levi não aceita as explicações que põem a providência divina ou a maior aptidão humana (seleção natural) como motivos da divisão do grupo de oprimidos entre sobreviventes e afogados.

Não seria razoável pensar que os piores sobreviveram porque foram incapazes de resistir, instalaram-se em postos estratégicos de trabalho e colaboraram com o sistema. Teriam sobrevivido porque dissimularam, só pensaram em si e ainda se adaptaram às condições desumanas. Enquanto que os “afogados” mantiveram a dignidade, não deixaram que apagassem a centelha humana que neles havia e por isso morreram.

Levi confere à sorte a sua sobrevivência, e não à força ou à habilidade de manter-se vivo. Na sua evidente tentativa de contrastar passado/presente/futuro, evoluiu no seu argumento: Auschwitz retornará?

Exatamente com o objetivo de deixar essa pergunta em destaque que o livro foi escrito. O alerta é para que todo cuidado seja tomado para que as condições sociais objetivas que foram receptivas ao sistema nazista sejam extirpadas. A posição de Levi é que é improvável que algo parecido com Auschwitz ocorra, mas não é impossível.

Com o distanciamento de quatro décadas dos fatos ocorridos no campo de concentração, Levi tece alguns comentários sobre as privações e violências sofridas. O que ocorreu foi uma violência inútil. Fazer sofrer sem que houvesse um motivo convincente a não ser fazer sofrer.

Degradar o ser humano a tal ponto de não haver pesar em matá-lo (É isto um homem?). Total desprezo pelos detidos que era evidenciado assim que entravam nos vagões.  Tratava-se de mecanismos metódicos de fazer sofrer. Evacuar em público. A nudez, a falta de colher, a tatuagem, expressões do mesmo constrangimento. O “inimigo” não devia apenas morrer, mas sofrer, morrer no tormento.

O livro Os afogados e os sobreviventes trata de uma discussão sobre os primeiros relatos dos que foram testemunhas oculares do extermínio nos campos de concentração. Passadas quatro décadas, muito foi lido, muitos foram os processos em que os responsáveis foram julgados, enfim, era uma perspectiva diferente dos primeiros relatos.

Ainda na sua discussão teórica depois da experiência do campo de concentração, Levi observa que havia uma proliferação de estereótipos produzidos por uma visão equivocada da história. Na sua atividade de divulgar as sombrias experiências de sobrevivente de Auschwitz, deparou-se com as perguntas: Por que não fugiram? Por que não se rebelaram? Por que não escaparam “antes”?

Essas são perguntas que demonstram que não se está atinando para a especificidade histórica dos campos de concentração nazista. Perguntas que revelam desconhecimento, pois houve fugas, rebeliões e casos em que pessoas fugiram antes do cerco.

É necessário o trabalho dos historiadores para que as gerações do presente e do futuro tenham um olhar fidedigno do que foi Auschwitz. Levi temia pela proliferação de uma versão histórica estereotipada. Alerta para a tendência de atenuar o terror do extermínio e da desumanização, olhando-os em termos do presente.

Justamente o mecanismo que a extrema-direita utiliza atualmente. Distorcem as interpretações dos fatos históricos, desqualificam os historiadores, substituem a robusta historiografia por teorias conspiratórias sensacionalistas. Mentiras que são ditas por gurus embusteiros, impulsionadas cladestinamente nas redes sociais por empresários patriotas e devidamente repercutidas por robôs pagos. Promovem vilões em heróis, criminosos em filantropos, falsos profetas em apóstolos, torturadores em estadistas, milícias em polícia, advogado de acusação em juiz e candidato a ditador em presidente.

Foto: Primo Levi, Montagem baseada em imagens do acervo Getty

Referência bibliográfica

LEVI, Primo. É isto um Homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988

LEVI, Primo. Os Afogados e os Sobreviventes: Os Delitos, os Castigos, as Penas, as Impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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