PROFECIA COMO ACOLHIMENTO

“Alonga as tuas cordas e firma bem as tuas estacas” (Isaías 54.1-3).

Voltar para Sião para reconstruir a cidade a partir do “alargamento” da tenda.

Alarga o espaço da tua tenda na chave de leitura individualista: torna-te um latifundiário e na tua riqueza comprova o poder de Deus.

Alarga o espaço da tua tenda na chave de leitura da instituição religiosa: faze crescer a igreja e institui a ditadura da maioria.

Alarga o espaço da tua tenda na chave de leitura diabólica: você é a pessoa mais lúcida da cidade, expanda-se e imponha-se, pois isso fará bem a todos.

Tenho mais medo dos falsos humildes do que dos “sinceramente” arrogantes.

Alarga o espaço da tua tenda na chave de leitura do profeta Isaías: alarga a tenda para acolher a quem precisa.

O Deus misericordioso nos constrange a elaborarmos planos novos para ampliar o nosso serviço a favor dos outros. Inclua pessoas, traga os excluídos para dentro.

A misericórdia de Deus nos alcançou. A nossa vai tocar em quem? Alguns preferem enfatizar a condição de povo eleito simplesmente para justificar relações de desigualdades.

Alarga o espaço da tua tenda não pode ser reduzido a bater laje do templo. Vamos acolher os solitários, buscar os marginalizados, abraçar os aflitos, aconselhar os confusos, marchar com os sem-teto, dividir o pão com os famintos e cantar acalantos para os oprimidos.

Enfim, em relação aos outros, seja justo!

Fundamentalistas religiosos na sua arrogância reduzem Deus a uma perspectiva de vida geralmente embalada em uma ideologia. Decorre desse comportamento uma total impaciência com os outros. Os mesmos se veem muito acima da comunidade. Crise pequeno-burguesa maquiada de zelo piedoso. Agem como se o participar da comunidade eclesiástica fosse uma concessão. Não sabem acolher, só aprenderam a depreciar.

Aprendi o poema do Paulo Leminski no auge do meu idealismo juvenil. Recortei e colei na agenda. O papel ficou bem amarelado, mas o Leminski ganhou cores novas recentemente:

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois.

O poema do profeta Isaías avisa que a promessa de Deus é engrossar a nossa sopa se a nossa intenção for dividi-la. É natural que quem foi alcançado pela misericórdia de Deus faça o gesto de acolher a quem Deus ama.

Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti (Isaías 54.10).

Monja Coen compartilhou uma história linda. Segundo ela, Dom Hélder Câmara acordou de madrugada com os ruídos que vinham da cozinha paroquial. Resolveu descer e verificar. Deu de cara com um ladrão. Sem assombro disse: “Ah! Assim como eu, você tem fome durante a noite. Vamos fazer uma omelete”. Sentaram à mesa e o que era para causar espanto tornou-se acolhimento. Após comerem juntos, Dom Hélder providenciou uma bolsa com alimentos. Dizem que o homem reencontrou a dignidade perdida e teve Dom Hélder como inspiração e referência.[1]

Alarga o espaço da tua tenda!

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[1] COEN, Monja. 108 contos e parábolas orientais. São Paulo: Planeta, 2015, p.122.

Foto: Domínio público/Divulgação

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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