Seria lindo ver o labrador voltar a sorrir
Correr livre pelas ruas arborizadas do Grajaú, em plena região metropolitana do Rio de Janeiro, parece que estou numa cidade bucólica do interior.
Correr na rua é um hábito antigo. Nunca liguei para marcadores de desempenho. Prefiro passos lentos para conseguir prestar atenção ao entorno.
A moça que caminhava subiu na calçada e sem cerimônia pegou uma goiaba no pé.
Micos malabaristas saem da mata da reserva e atravessam a rua pelos fios para comer mangas verdes.
Idosos caminham sobre o chão forrado com folhas secas de amendoeiras.
Crianças sonolentas esperam na porta de casa o transporte escolar.
O padeiro equilibra na sua bicicleta o cesto de pães. Os fregueses de sempre o esperam. Qualquer oscilação na cor dos pães ou no horário da sua chegada é motivo para ranzinzas o ameaçarem com adesão à modernidade da padaria da praça.
Balé dos pais expondo os seus bebes aos primeiros raios de sol do dia. Nítido que aquela mãe de primeira viagem não dormiu nada essa noite. Extenuada mexe a sua cria, sacode o menino, tentando ficar desperta para o novo dia.
Na profusão de imagens, rostos, beleza, manhã e humanidade, tropeço no sentido de epifania. Deus deixa as suas pistas nas coisas simples e vagas. Os religiosos clamam pelo sobrenatural. Aos místicos, basta a beleza natural do instante.
O meu medo como corredor de rua sempre foi atrair cães que latem, correm e mordem. Carrego no corpo os sinais dos dentes de um cachorro que não podia me ver. Quando menino, o medo me paralisava. Hoje, evito algumas ruas e sigo com os meus medos sem deixá-los pesar tanto.
Descida a ladeira. Quarta esquina à direita. Corria pela rua. Quando passava em frente a quarta casa, ele latia como se fosse pular as grades. Com o tempo, ele diminuiu o ímpeto. Estranhei muito no dia em que passei trotando na calçada, bem perto, e ele não esboçou reação. Quieto estava, quieto ficou.
Na varanda da bela casa abandonada, a solidão estava estampada na cara dele.
Evita o sol. Não responde aos acenos. Finge que não vê. Tristeza na sombra.
Olhos apagados. Musculatura exausta.
Todas as portas e janelas do sobrado trancadas. Grossas correntes no portão.
Quintal matagal e varanda sem flores. Olhar fixo em coisa alguma.
Não emite sons. Nada de choro doído, grito revoltado, rosnado ameaçador ou grunhidos desconexos.
Silêncio profundamente triste. Solidão desconcertante.
Perdeu a voz depois de muito pedir ajuda? Emudeceu pelo processo de condicionamento frustrante? Silenciou resignado na condição de peça decorativa de uma casa em ruínas guardada como investimento?
Inevitável perguntar pelos donos da casa: como podem submeter um ser ao abandono absoluto em troca da segurança da sua propriedade privada? Trata-se de uma vida desperdiçada.
A ironia assombrosa registrada na placa afixada na entrada principal: cuidado com o cão!
O que assusta é a pessoa ausente capaz de manter um cachorro nessas condições. Se procede assim com o animal, imagina do que é capaz em relação ao semelhante que vive perto?
A manhã no Grajaú teria sido perfeita se os cachorros vagabundos que acompanham todos os dias os catadores de lixo reciclável libertassem o irmão oprimido.
Seria lindo ver o labrador voltar a sorrir entre os vira-latas andarilhos. Vira-latas soltos, sem pedigree, ocupados com brincadeiras entre eles, nunca me assustaram porque sequer me notavam.
Experimentar o acolhimento singelo de uma comunidade que não vive em função de propriedades privadas trancadas, nem de fidelidade canina a proprietários ausentes.
Hoje, quando passo por lá, a casa continua fechada. Os proprietários continuam ausentes. Quanto ao Labrador, deixou de ser um cão de guarda. Vive só na minha lembrança.