A Morte Serena de Sócrates vs. o Terror de Jesus

Na obra Fédon, Platão descreve a morte de seu mestre, Sócrates, com absoluta serenidade. Ele não apenas está em paz, mas demonstra felicidade. Para o filósofo, a morte era a “libertação final”, o momento em que a alma imortal finalmente escaparia da prisão do corpo para encontrar seu destino eterno. A morte, portanto, era uma amiga a ser recebida com júbilo. Não há sinal de terror, apenas calma e dignidade.

Em total contraste, a morte de Jesus é marcada pelo horror. Ele é possuído por uma tristeza e angústia tão profundas que quase o levam ao desespero. Sozinho, abandonado por seus discípulos que dormiam enquanto ele agonizava, Jesus não vê a morte como uma amiga, mas como a “grande inimiga a ser vencida”. Ele chora, clama ao Pai para ser poupado e, como descreve o autor de Hebreus, oferece suas preces “com forte clamor e lágrimas”.

“[…] a minha alma está profundamente triste até à morte” (Marcos 14:34).

Essas duas cenas revelam um verdadeiro abismo entre o pensamento grego e a fé judaico-cristã. Para um, a morte é libertação; para o outro, é o último inimigo a ser derrotado.

A “Alma Imortal” – Uma Ideia Mais Grega que Bíblica

A crença cristã popular na imortalidade da alma, que parece tão fundamental, na verdade tem sua origem na filosofia helênico-platônica, que foi absorvida pela teologia cristã nos primeiros séculos da Igreja, especialmente durante o período da patrística.

A diferença é crucial. O pensamento grego foca na imortalidade da alma, uma parte de nós que sobrevive. A fé cristã, por sua vez, foca na ressurreição de toda a vida, não apenas de uma parte dela. Para o grego, o inimigo a ser vencido é o corpo. Para o pensamento semítico-bíblico, o inimigo a ser vencido é a morte.

“[…] nada nos mostra melhor a diferença radical entre a doutrina grega da imortalidade da alma e a fé cristã na ressurreição”.[i]

A glória da ressurreição está justamente no fato de que a morte aniquila tudo, e Deus, em seu poder, restaura a vida por completo.

As Consequências Sombrias do Desprezo pelo Corpo

A adoção dessa teologia “cristã-platônica”, que menospreza o corpo em favor de uma alma etérea, não foi apenas uma discussão acadêmica. Suas consequências práticas na história foram extraordinariamente brutais. Uma espiritualidade desencarnada e idealista levou a uma série de horrores: a busca deliberada pelo martírio; a violência física contra vozes dissonantes dentro da Igreja; a demonização do sexo e dos prazeres; o desenvolvimento de uma culpa endêmica na cultura ocidental; o genocídio perpetrado pelas Cruzadas; a tortura da Inquisição, que justificava “matar o corpo para salvar a alma”; e o suporte ideológico para a arrogante colonização europeia, o genocídio de povos ameríndios e a escravidão dos povos africanos.

No contexto brasileiro, essa visão gerou um forte repúdio à cultura local. Ritmos musicais, danças, festas populares e até mesmo as duas maiores paixões nacionais, o futebol e o carnaval, foram vistos como pecaminosos por serem expressões da alegria do corpo.

O Corpo Como Templo – Uma Surpreendente Valorização

Em oposição direta ao desprezo platônico, que via o corpo como um “caixão” para a alma, a perspectiva semítico-bíblica o valoriza imensamente. O próprio processo de salvação em Cristo tem o corpo em seu centro. É através de um ato profundamente físico que a redenção acontece: “Isto é o meu corpo oferecido por vós […]. Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós” (Lucas 22:19b, 20b).

O apóstolo Paulo leva essa valorização a um novo patamar com a poderosa metáfora do corpo como “templo do Espírito Santo”. Longe de ser uma prisão, nosso corpo é o lugar da habitação de Deus.

“Ou não sabeis acaso que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós e que vos vem de Deus, e que vós não vos pertenceis? […] Glorificai, portanto a Deus por vosso corpo” (I Coríntios 6:19, 20 – TEB).

Essa visão confere uma “inviolável dignidade” ao corpo humano, transformando a forma como nos relacionamos com nossa própria fisicalidade e a dos outros.

Conclusão: Uma Espiritualidade de Ser Humano

A verdadeira espiritualidade bíblica, portanto, não é uma fuga da nossa condição carnal, mas uma profunda imersão nela. O paradigma é Jesus, o “Deus-Ser humano”, que não desprezou a carne, mas a assumiu plenamente. É na nossa humanidade que encontramos o divino, e é ao nos tornarmos mais humanos que nos aproximamos de Deus.

Como resumiu o teólogo Leonardo Boff, “a divinização do homem humaniza a Deus e a humanização de Deus diviniza o homem”.[ii]

Se a verdadeira espiritualidade se encontra em nossa plena humanidade, como isso pode transformar a maneira como enxergamos nosso corpo, nossos prazeres e nossa vida cotidiana?

[i] CULLMAN, Oscar. Das origens do evangelho à formação da teologia cristã. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 189.

[ii] BOFF, Leonardo. A ressurreição de Cristo. A nossa ressurreição na morte: A dimensão antropológica da esperança humana. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 90.

 

Wanderley Pereira da Rosa

Doutor em Teologia, pós-doutorado em Princeton com uma pesquisa sobre evangélicos e a extrema direita no Brasil. Em 1997, fundou a Faculdade Unida de Vitória, onde atua como Diretor-Geral e professor de História do Cristianismo.

OPINIÃO
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