Sou um pai atípico: meu filho está no espectro autista

Meu filho está no espectro autista. Isso diz algo sobre ele, mas não o reduz a um rótulo nem o define. O autismo está no pacote, no entanto, jamais ocupou o espaço todo. Este artigo não é sobre o João Luca. Também não será sobre a sua mãe, Patrícia, nem sobre o seu irmão, Pedro. É raro, mas, desta vez, quero falar de mim. Longe de querer figurar como herói ou romantizar o autismo, minha experiência é cercada de contradições e até mesmo eventuais grosserias.

Não consigo traçar um cronograma sobre a descoberta e impactos do Transtorno do Espectro Autista (TEA) na minha vida. Os primeiros sinais, as primeiras reuniões na escola, os primeiros aniversários em que o aniversariante não interagia com os convidados conforme as convenções, a minha negação dizendo que a mãe estava psicologizando a timidez do menino. Médicos, psicopedagogas, nutricionistas, mediadoras, psicólogas e a busca por uma escola adequada. Quando veio o diagnóstico, graças a minha parceira, todas as recomendações já estavam incorporadas ao nosso cotidiano. Era necessário muito estímulo para que os desenvolvimentos psicomotor, emocional, cognitivo e social fossem potencializados.

O Pedro nasceu e encheu a casa de alegria. Estímulo garantido para o resto das nossas vidas. Literalmente, o irmão que o Luca pediu a Deus. À época eu era professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) na cidade de Campos dos Goytacazes. Dedicação exclusiva, coordenador do curso de Ciências Sociais. Morando na cidade do Rio de Janeiro, ficava em Campos entre segunda e quinta-feira. No auge da minha experiência de pai atípico, resolvi que não ia colocar o meu “Isaque” no altar, foi quando sacrifiquei a minha carreira. Pedi exoneração do serviço público. Queria dormir todas as noites em casa para colocar em prática o meu maior projeto intitulado como “estimulação”. Minha instabilidade profissional foi assumida com dores, mas sem espantos. Passei à condição de professor horista que a cada semestre negocia horários.

O curso de Inglês, como seria? Temendo as reações, resolvi me matricular e ser colega de turma do meu filho. Constrangimentos a parte, quando avaliado depois de um ano, a professora disse que a minha pronúncia estava travada e eu devia praticar com o Luca, uma vez que ele era fluente. Tranquei a matrícula no mesmo dia e ele seguiu no curso. Nós descobrimos que ele tinha extrema habilidade para aprender línguas estrangeiras. Formou no curso de Inglês e está cursando francês. A direção da Aliança Francesa adaptou a sala e as aulas para incluí-lo. De forma honesta, reconheceram que não estavam preparados para o ensino inclusivo, mas queriam aprender. Portanto, convidaram a Patrícia, enquanto psicóloga e mãe, para ministrar uma aula para os professores da rede sobre neurodiversidades e neurodivergências. A vivência gerou uma parceria que perdura.

O meu arqueiro zen é semente. No leve, ele vai brotando.

As tentativas nos esportes coletivos foram tensas. Ele tinha dificuldades com as regras e com ritmos sincronizados. Até que descobriu a natação. Para acompanhá-lo, mergulhei. Aprendi a nadar por ele. Depois de um tempo em que estava completamente ambientado e nadando ao modo dele todas as modalidades, dei-me por satisfeito e deixei a natação. Atualmente o Luca vai sozinho para a piscina todos os dias da semana com sol ou chuva. Perdeu peso e se livrou de uma asma intensa que o acompanhou durante a infância.

Depois dos anos de distanciamento social imposto pela pandemia de Covid-19, Luca pediu como presente de aniversário a matrícula na academia de musculação. Assim que chegou, despertou olhares curiosos, mas logo atraiu a simpatia dos professores e da turma dos marombados. Regularmente vai à academia sozinho. Adepto da corrida de rua, já consegue me acompanhar nos treinos de 10 Km.

Foi uma surpresa quando escolheu o vestibular de Educação Física. Temoroso, expliquei inúmeras vezes para ele que uma coisa é gostar de esportes, e outra bem diferente é ser um profissional de Educação Física. Apoiado pela mãe, ele me ignorou solenemente. E lá fomos nós enfrentar o vestibular. Experiência dolorosa que nos remeteu ao período pré-escolar quando aprendemos que para o sistema de educação neurodiversidade é quase sinônimo de exclusão. Nos três vestibulares em que concorreu a uma vaga, mesmo com a figura de mediadores, sempre que ele entrava e o portão fechava, eu chorava um choro doído reprimido há anos. Era como se meu filho não tivesse chance naquele modelo padrão.

Luca está cursando o terceiro período de Educação Física. A coordenação foi parceira e constituiu um comitê para tornar efetivos os protocolos do ensino inclusivo. É monitor na faculdade e desde o segundo período conseguiu estágio numa escola para atuar com turmas do Fundamental I. Matriculei-me como estudante na mesma faculdade. Depois de duas décadas como professor universitário, voltei para a cadeira de aluno, agora na graduação de Psicologia.  Vamos juntos para a faculdade. Ele precisa do impulso inicial, depois, segue sozinho ao modo dele.

Enquanto uns abrem portas, outros puxam tapetes.

Enfrenta dificuldades típicas de um jovem autista. Ele está ciente que o mundo adulto é confuso e a sociedade é preconceituosa.

Ele aprendeu a andar de bicicleta sem nenhum arranhão e sem nenhuma queda importante porque eu corri atrás e segurei. Só larguei quando ele estava devidamente equilibrado. Só que agora não tenho a mesma força e velocidade para correr atrás e ampará-lo. Mas quem disse que o Luca precisa ou requisita tal empenho? Chegou o tempo da autonomia em que cair faz parte. Machucados acontecem. O meu excesso de cuidados muitas vezes o sufocou. Hoje eu sei que esses meus exageros ocorreram porque eu o subestimei. Na verdade, era ele que estava me segurando ao perceber o meu desequilíbrio.

O meu arqueiro zen é semente. No leve, ele vai brotando.

Sem romantizar minha condição de pai atípico ou sem sucumbir na depressão por causa disso, desenvolvi um gosto apurado para conviver com pessoas margeadas. Sim, o Luca fez de mim um pai que teve que escolher entre deixar legados ou atuar no momento para promover a “estimulação”. Fiz a minha escolha que não é prescritiva, sequer padrão para quem quer que seja. Apenas a minha experiência.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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