PROFECIA COMO BOAS NOTÍCIAS
Pode parecer de mau gosto falar da experiência de escravidão no Egito para aqueles que estavam no exílio babilônico. Mas Isaías queria destacar o Êxodo. A esperança de um novo Êxodo precisava ser readmitida. O tempo era de sonhar e não de se resignar.
Ironia levar um povo a comemorar a possibilidade de chegada ao deserto? Tudo bem, o deserto é símbolo de ausência, inclusive ausência dos opressores. Os israelitas deviam lembrar que a mobilidade pelo deserto foi acompanhada pelo cuidado caprichado de Deus:
Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus. Todo vale será aterrado, e nivelados todos os montes e outeiros; o que é tortuoso será retificado, e os lugares escabrosos, aplanados (Isaías 40.3, 4).
Mau agouro apontar para o outro um caminho que se sabe perigoso? Até então a linguagem de Isaías era cheia de predições terríveis. O que disse, aconteceu. Como agora vinha ele dizer que mudou a direção do vento e Deus alterou a disposição? Naquele tempo, como no nosso, existiam aqueles agourentos que se satisfaziam com a lógica “quanto pior, melhor”. Definitivamente, este não era o perfil de Isaías.
A misericórdia extravasa dos seus lábios porque antes transbordara do seu peito a dor. Dizem que isso se chama empatia.
Pode parecer contraindicado para quem quer consolar dizer que “toda a carne é erva”. Nascer, desgastar-se, envelhecer e morrer. Somos perecíveis e efêmeros. Nossa fragilidade é desconcertante. Posso imaginar que um povo no exílio deveria perguntar pelo desperdício do tempo. O processo de humilhação imposto pelo exílio devia comprometer seriamente a percepção de dignidade. No entanto, o contraste proposto tinha em mira consolar. Consolar um povo que precisava readquirir a esperança.
Talvez console lembrar a eternidade de Deus quando tivermos a impressão de que estamos desperdiçando a vida. Tudo passa. A palavra de Deus dura para sempre.
Seria suspeita a profecia que nasce da experiência e que não se agarra a qualquer evidência concreta? A voz que clama no deserto parece incapaz de mudar o que acontece na cidade. O que é dito pelo profeta do deserto, num primeiro momento, só é dito. Não existem sinais para apontar nem fatos para atestar o que a boca diz.
Moacyr Scliar narra a trajetória de um dos maiores escritores do século XX para enfatizar que produção é uma coisa e reconhecimento é outra bem diferente. Às vezes essas partes convergem coerentemente, mas nem sempre. Franz Kafka dependia do seu trabalho como advogado para se sustentar. A literatura era a grande paixão, no entanto, em termos financeiros, não era algo com que podia contar. Provavelmente algumas das suas publicações foram custeadas por ele mesmo. Scliar conta que em determinado dia Kafka foi à livraria para monitorar a recepção ao seu último lançamento e soube que apenas onze exemplares haviam sido vendidos. Kafka reagiu nos seguintes termos: “Dez fui eu quem comprei; gostaria de saber quem comprou o décimo primeiro”.[1]
Ter os pés no chão e caminhar serenamente não eliminam a possibilidade de alimentar a esperança de que amanhã vai ser bem diferente. A fé que vem pelo ouvir. Não vê, mas espera.
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[1] [1]ALVES, Rubem; SCLIAR, Moacyr. Rubem Alves & Moacyr Scliar conversam sobre corpo e alma: uma abordagem médico-literária, p.64.
Foto: Domínio público/pxhere