Ainda Sobre “Apocalipse nos Trópicos”!

O lançamento do documentário “Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa, pela Netflix em 14 de julho, gerou grande expectativa em todos nós que estamos debruçados sobre a relação entre fé e política no Brasil. Trata-se da (vã?) tentativa de compreender o ciclo de retroalimentação entre religião e poder político a que temos assistido nos últimos anos.

Eu não apenas assisti o documentário, como também li resenhas e críticas ao mesmo. Curiosamente, as críticas que li foram feitas por pensadores evangélicos do campo, como chamamos, progressista.

Alguns pontos se repetem: a falta de familiaridade da diretora com o campo evangélico é destacada; quase todos “reclamam” da apresentação de Silas Malafaia como representante dos evangélicos e da falta de uma abordagem que incluísse os evangélicos progressistas. Um terceiro ponto é o fato de a Teologia do Domínio ser apresentada como suporte teórico para o apoio da maior parte dos evangélicos aos projetos políticos da extrema-direita no Brasil.

Os elogios que li vieram de pensadores progressistas não evangélicos, como Vladimir Safatle, João Cezar de Castro Rocha, Luis Nassif…

Como já destacado neste blog por Valdemar Figueredo [1], as críticas parecem exageradas, eu diria mais, equivocadas, talvez até injustas. Por quê?

Primeiro, porque não ser do campo evangélico não significa que não se possa familiarizar com ele a partir da escuta, tal qual um antropólogo em suas pesquisas de campo. O documentário me pareceu um enorme esforço de escuta em busca de compreensão, sem renunciar a um compromisso com o processo democrático e com a defesa do Estado laico.

Em segundo lugar, o documentário não é sobre os evangélicos, não, mil vezes não! Se fosse, deveríamos esperar uma exposição da chegada dos protestantes ao país, uma diferenciação entre históricos, pentecostais e neopentecostais, suas diferentes teologias, liturgias e sistemas de governo etc. Mas devo insistir: “Apocalipse nos Trópicos” não é um filme sobre os evangélicos no Brasil, mas um retrato de uma relação recente entre uma considerável parte desses evangélicos e o poder político da extrema-direita em nosso país.

Portanto, trata-se de um recorte, como se espera de toda boa pesquisa.[2] Por fim, o fato de boa parte desses evangélicos nunca ter ouvido falar sobre a Teologia do Domínio não significa que ela não esteja presente, embalando corações e delírios de poder.

A meu ver, o documentário tem uma preocupação de fundo: a possibilidade de implantação de uma teocracia no Brasil (seria “O Conto da Aia” destas terras?), consequentemente, com a óbvia perda de nossa jovem democracia.

Logo no início, destaca-se uma fala do então presidente Bolsonaro: “Não tem essa historinha de Estado laico, não. É Estado cristão!”. A plateia aplaude com entusiasmo. Esse mote serve como uma espécie de espinha dorsal da narrativa.

Mas qual teologia daria suporte teórico para tal desdita? Silas Malafaia, que sim, desempenha protagonismo na película, responde citando ideias da Teologia do Domínio, sem nomeá-la. Ele faz isso ao criticar as gerações de pastores que enfatizavam a cidadania celestial, se esquecendo da terrestre. Segundo ele, esses líderes se limitaram ao “monte da religião” e deixaram de lado os outros “montes” da cultura, da economia, da política etc. O ministério dele estaria comprometido em corrigir esse erro.

Afirmar que Silas Malafaia não representa todos os evangélicos soa desnecessário, mas, sim, ele encarna uma espécie de “tipo ideal” de certo líder/empresário evangélico que acumulou poder econômico (e político) por meio do uso da religião para este fim. Seu histrionismo o colocou nesse lugar de destaque.

Petra Costa recua na história para descrever, ainda que brevemente, a influência política e religiosa dos EUA sobre a recente história do Brasil, com destaque para as ramificações desse movimento teocrático estadunidense sobre o nosso país através das pregações de Billy Graham e da organização conhecida como The Family (recomendo o Documentário de mesmo nome na Netflix) [3].

A Teologia do Domínio explica todos os descaminhos do Brasil e da maior parte das igrejas evangélicas? Não! Mas, o Documentário não diz isso, apenas destaca a importância dessa teologia para o ideário da extrema-direita.

Claro que qualquer coisa pode ser criticada, e “Apocalipse nos Trópicos” não está isento de erros ou limitações. No entanto, o que me pareceu foi, por um lado, uma certa necessidade pessoal de demonstrar espírito crítico e, por outro, uma espécie de reserva de mercado: “Como assim estão falando do meu campo sem me consultar?”

Vale destacar a capacidade de alcance do documentário, já que foi feito por uma cineasta reconhecida no Brasil e fora dele e está disponível em um streaming com a capilaridade da Netflix. O filme merece muitos elogios, especialmente nestes tempos em que vivemos, pois é uma contribuição relevante para o debate público no Brasil.

 

“O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente…”

 

[1] https://institutomosaico.com.br/miragens-e-vertigens-as-criticas-ao-apocalipse-nos-tropicos-de-petra-costa/

[2] Recomendo a entrevista dada pelo nosso colega, professor Raimundo Barreto, que colaborou com o roteiro, dada à Alessandra Orofino, produtora do Documentário: https://www.youtube.com/live/QR_u-8xzEFQ?si=-kRrd62-cysDjhYg

[3] https://www.netflix.com/br/title/80063867?s=i&trkid=258593161&vlang=pt&trg=wha

Wanderley Pereira da Rosa

Morador de Vila Velha/ES, doutor em Teologia e realizou um pós-doutorado em Princeton com uma pesquisa sobre evangélicos e a extrema-direita no Brasil. Em 1997, fundou a Faculdade Unida de Vitória, onde atua como Diretor-Geral e professor de História do Cristianismo. Uma das suas prioridades é o seu hobby, correr!