Alzheimer: café frio e a arte do cuidado

A doença de Alzheimer chega, entra na nossa casa sem pedir licença e toca profundamente na gente.

Vou escrever ao meu modo a estória que me contaram. Provavelmente os leitores desta coluna já se depararam com alguma versão de tal estória. Tem a ver com cuidado e silenciamento gradativo até o apagamento. Embora conhecida, quando recontada, acrescentamos a estória nossas vivências, memórias e afetos. O cuidado passa por fases, doses de amor gradativo, cotidiano e para sempre.

Pedro José (82 anos) era do tipo que não gostava de preocupar. Sempre dizia aos filhos que estava tudo bem. Com saudades, mas sem queixas.

Morava sozinho. Negava-se a ter o serviço de acompanhantes em casa. O máximo que os filhos conseguiram foi colocar uma empregada doméstica que fazia três diárias por semana. Casa arrumada e comida pronta.

Os filhos adultos moravam em outro estado. Ligavam todos os dias, eram presentes na vida do pai, mas viviam geograficamente longe com suas respectivas famílias.

Metodicamente passeava todas as manhãs bem cedinho com o seu fiel companheiro. Comedido nas distâncias, pois, o cachorro dava sinais de cansaço. Gostava de caminhar, mas, as limitações físicas do seu amigo de tantos anos não permitiam que fossem longe, muito menos depressa.

Pedro José procurou o médico na emergência do hospital. Acidente doméstico que seria facilmente contornado se houvesse alguém em casa para fazer um simples curativo na mão dele. O corte não foi profundo, mas sangrava muito. Naquela manhã não faria o passeio matinal com o cachorro. No entanto, de resto, planejava cumprir sua rotina tão logo fosse atendido no pronto socorro.

Ele estava com pressa. Disse que tinha um encontro. Enquanto trabalhava, o médico suavizou o procedimento com uma conversa amena e perguntou qual era o compromisso do velhinho.

Às vezes acontece. O jovem médico projetou a saudade que sentia do avô recém-falecido ao tocar nas mãos do Pedro José. Por ele, alongaria o atendimento para desfrutar daquela presença que o remetia a um dos maiores amores da sua vida.

Atendimento humanizado, o médico, além de limpar a ferida, queria conversar, atenção que vai além da pele. Comunicação de alma. Como disse o poeta pernambucano: “A solidão é fera, a solidão devora / É amiga das horas, prima-irmã do tempo / E faz nossos relógios caminharem lentos / Causando um descompasso no meu coração” (Alceu Valença).

Na intuição do médico, a dor da alma era bem maior do que a dor da pele ferida.

O simpático senhor disse que sua esposa, Dona Beatriz (79 anos), estava num asilo e todos os dias ele tomava o café da manhã com ela.

– Nesse caso, ela deve estar assustada com o seu atraso. – disse o médico.

A resposta do idoso foi intrigante:

– O estágio do Alzheimer está bem avançado e há algum tempo ela não me reconhece.

Intrigado o médico pergunta:

– Mas se ela não sabe quem o senhor é, por que essa necessidade de a visitar todas as manhãs?

O velho sorriu e disse:

– É verdade, ela não sabe quem eu sou, mas eu sei quem é ela!

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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