Igrejas “laboratórios” como testagem da imunidade de rebanho

Foto: Raphael Müller

BIRMAN, Joel. O trauma na pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.

Afetados diretamente pela Pandemia do Coronavírus, como teríamos coragem de comprar um livro sobre o assunto ainda vivendo a peste? Alguns dias não conseguimos acompanhar o noticiário tamanho o nosso desgaste. Evitando as aglomerações e os burburinhos das redes sociais. Como faríamos para enfrentar o psicanalista falando dos nossos traumas que ainda estão em “carne viva”? Estamos imersos numa realidade em que frequentemente evocamos a palavra “sanidade”. Fazer esforço para manter a serenidade tem a ver com evitar a realidade exposta em profusão pela mídia?

O livro foi escrito no calor dos acontecimentos e concluído em setembro de 2020. Dada a dinâmica da pandemia da Covid-19, poderíamos imaginar que o trabalho de Joel Birman foi publicado já com uma defasagem significativa. Talvez seja evidente, mas não custa enfatizar: a narrativa do Birman é psicanalítica e não jornalística. Joel Birman é professor titular na UFRJ e professor aposentado no prestigiado Instituto de Medicina Social da UERJ. Nas suas pesquisas, não é incomum trabalhar com abordagens interdisciplinares. Problematiza a pandemia da Covid-19 na dimensão psíquica, sem ignorar as suas múltiplas dimensões.

O conceito que ele destaca logo de início: complexidade. Partindo dessa noção, conforme trabalhado por Edgard Morin, a realidade complexa exige abordagens interdisciplinares. Estamos habituados a respeitar as distâncias – físicas e temporais – para tentar compreender e interpretar os fenômenos sociais com as suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. No entanto, Birman escreve a quente sobre a dimensão psíquica dessa crise sanitária. Não tenta isolar artificialmente uma amostragem do seu objeto de pesquisa para tentar compreendê-lo.

Popularmente lidamos com pessoas que quando se referem à pandemia da Covid-19 utilizam o termo loucura. Nos foi imposta uma realidade tão desmobilizadora que ficamos fortemente impactados pelas mudanças de hábitos e alterações das emoções. Que loucura tudo isso! Acompanhando a gestão da saúde pública no Brasil, chegamos à conclusão de que contrariamos as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e nos distinguimos das melhores práticas, quando comparados a outros países. Que loucura tudo isso! Observando o comportamento negacionista do Presidente Jair Bolsonaro que subestimou a peste chamando-a de gripezinha, incapaz de demonstrar empatia frente a tantas mortes e sequelas, capaz de contrariar a ciência com cinismo, não poucas vezes pensamos: Que loucura tudo isso!

Não gostaríamos de ser tão suscetíveis aos eventos externos, mas somos. Somos vulneráveis aos vírus e às decisões alheias. Tomamos todos os cuidados para mantermos a saúde física e mental, mas descobrimos duramente que o nosso “tudo” não é o “suficiente”. Embora não nos agrade a ideia, porque vivemos em uma sociedade, somos afetados nas múltiplas dimensões da nossa vida com o que os outros decidem das suas. Para suportar tamanha dor e desamparo, talvez tenhamos que aumentar o consumo do vinho ou aumentar o volume da música. O bom palavrão empregado a seu tempo também pode ajudar a aliviar!

Decisão ética: a bolsa ou a vida?

A política governamental diante de critérios éticos para decidir: O paradoxo não é simples. A paralização temporária das atividades econômicas para afirmar o imperativo da vida. Conceitualmente podemos acordar que o principal vem primeiro e o importante resolvemos depois. Contudo, tratando-se de administração pública o problema não se dissolve apenas no manejo da razão. Seguindo exemplos práticos de países que priorizaram o imperativo da vida, Birman adverte que mesmo para aqueles que querem priorizar a economia, o mais prudente seria resolver o quanto antes as questões referentes à saúde pública para retomar o ambiente característico do capitalismo, com fluxos de capital e pessoas. O humor do mundo dos negócios não está dissociado do humor das pessoas.

Birman faz uma breve digressão sobre a catastrófica gestão da saúde pública feita no primeiro semestre de 2020 pelo governo Trump. Priorizou o imperativo da bolsa, desprezou as orientações científicas e potencializou ainda mais a tragédia sanitária. A recuperação da economia dependia da priorização do imperativo da vida. Parece óbvio? Para o governo de Jair Bolsonaro, espelhado no governo Trump, o óbvio ululante não passou pelo crivo do negacionismo crônico. “O presidente Trump foi engolfado e começou a perder a respiração política pela montanha de cadáveres que assola a população norte-americana, em todos os seus cinquenta estados, de forma sinistra” (BIRMAN, 2020, p. 47).

O Trump protagonizou uma tragédia americana e o Bolsonaro nega as evidências científicas para protagonizar uma tragédia brasileira. O imperativo da bolsa resultou em milhares de mortes. Cálculos políticos privilegiaram os gráficos eleitorais em detrimento dos funestos gráficos dos hospitais. Em resumo, em termos psicanalíticos, os governos que encararam a peste da pandemia nestes termos agiram com perversidade e crueldade. Tornou-se corriqueiro acompanhar diariamente o noticiário atualizando os números de mortos, enquanto o presidente Bolsonaro se mantinha indiferente com uma postura de frieza e ironia. Para justificar a crueldade encarna uma “ética da responsabilidade”[1] que não vai além da bolsa.

Decisão religiosa: perversidade ou solidariedade?

O trauma na Pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais e científicas. Uma análise psíquica que leva em consideração múltiplas e simultâneas dimensões do fenômeno e que utiliza o conceito epistemológico de complexidade. Diante desse quadro, não estaria faltando uma dimensão fundamental?

Tanto nos Estados Unidos presidido por Trump quanto no Brasil presidido por Bolsonaro, o negacionismo científico e a priorização da economia foram feitos com uma linguagem fortemente religiosa. Supostas justificativas teológicas de grupos fundamentalistas evangélicos dando suporte às escolhas de políticas públicas governamentais. Governos e igrejas que encararam a peste como mal (linguagem religiosa) e não como pandemia (linguagem científica). Igrejas mais afeitas à lógica do mercado econômico do que às ações de solidariedade dos grupos humanitários. O não parar a economia se confundiu com os protestos de não fechar os templos temporariamente para evitar as aglomerações em cidades com alto índice de contágios e mortes.

Nas alegadas múltiplas dimensões do trauma na pandemia do Coronavírus, Birman não aprofunda a dimensão religiosa. Quando cita o contexto religioso brasileiro, destaca o bispo Edir Macedo e o pastor Silas Malafaia. Dignos representantes dos defensores do “isolamento vertical seletivo”, conforme convicta pregação do presidente Bolsonaro. Mais do que defensores do “isolamento vertical seletivo”, opositores ferrenhos a qualquer tipo de barreira às práticas econômicas e comerciais. Os pastores neopentecostais “opuseram-se terminantemente ao dispositivo sanitário, ao discurso científico e à defesa da quarentena” (BIRMAN, 2020,, p. 76).

O que foge ao escopo do trabalho de Birman é que esse comportamento não ficou restrito aos chamados neopentecostais. Foi o comportamento majoritário entre as igrejas evangélicas, bastante comprometidas como base política do Bolsonaro. As chamadas megas igrejas midiáticas não abdicaram aos cultos presenciais nos templos, ainda que disponham de potentes redes de comunicação. Diante da chave-de-leitura sugerida por Birman, esperávamos que religiosos, entre a bolsa e a vida, optassem pela priorização da vida, colocando-se, assim, em parceria com a ciência. Mas não foi isso que ocorreu. De forma pública e escandalosa, sem qualquer constrangimento, reivindicaram direitos na tradição do liberalismo. Assessorados por autodenominados juristas cristãos, discursaram a favor dos direitos individuais e não cogitaram renúncias pessoais em prol do coletivo. Passaram a largo até da cupidez liberal que propugna ganhos pessoais quando agimos para promover interesses coletivos.

É público e notório: muitas igrejas evangélicas no Brasil estabeleceram alianças de vida e morte com o governo Bolsonaro. Flexibilizaram normas sanitárias assim como flexibilizaram a ética da vida. Priorizaram a ética da bolsa e precisaram flexibilizar os princípios do evangelho. O pragmatismo político suplantou as mensagens do amor e cuidado. Para boa parte da sociedade brasileira, as igrejas midiáticas, cada vez mais esteticamente militarizadas, não são compostas por gente ignorante que se deixa manipular por líderes ambiciosos. Existe hoje a percepção que muitas dessas igrejas são compostas por gente que quer dominar, ocupar espaços, num tipo de redenção que se dá pelas vias política, econômica e cultural. Essa percepção já existia de forma vaga, durante o trauma na pandemia do Coranavírus ela se confirmou para muitos. Hoje o conveniente negacionismo da ciência, amanhã, possivelmente, o negacionismo da democracia.

Muitos evangélicos, absolutamente na contramão desse movimento majoritário, descobriram penosamente na pandemia que permanece a fé, mas foi-se a comunidade cristã. sentiram-se abandonados, tratados como mercadoria, convidados para desafiar a ciência como se isso fosse demonstração de fé. Enfim, o trauma para alguns evangélicos tem a ver com a perda de vínculo religioso, perda da comunhão comunitária, perda do sentido dos cânticos congregacionais, perda absoluta da necessidade do abraço da morte. Uns esbravejam pelas redes sociais e são severamente repreendidos pelos crentes alinhados. Outros preferiram calar e manter o isolamento social em relação a igreja para além da pandemia.

Seja qual for o cenário, a experiência do desamparo é dolorosa. Não sem dor, alguns evangélicos constataram nesta pandemia que determinados líderes religiosos foram capazes de transformar igrejas em laboratórios para testar a controversa tese de imunidade de rebanho. Provaram que a fidelidade ao governo Bolsonaro, a despeito do que creem e pregam, os levaram a protagonizar atos cruéis de gente perversa. Entre tantos outros fatores, o trauma de parcela dos evangélicos no país tem relação com que suas igrejas fizeram ou deixaram de fazer durante a pandemia do Coronavírus.


[1] Sobre a “ética da responsabilidade” em comparação com a “ética das últimas finalidades”, ver Max Weber. (WEBER, Max. A psicologia social das religiões mundiais. In: GERTH, H. H.; MILLS, C. Whight (org.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1982. p. 309-346).

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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