Milton Ribeiro foi preso: MEC e Midas

“Só acreditaria num Deus que soubesse dançar.” Nietzsche

“Deus é leve e ri.” Rubem Alves

Na poesia bíblica, Deus é aquele que “converte o meu pranto em dança”.

No entanto, no nosso debate público, Deus não dança.

Ele se vestiu de togas sóbrias para judicializar um caso trágico. Pediu para uma menina violentada que ela suportasse um pouquinho mais para que os ritos dos tribunais se alinhassem aos ritos do fundamentalismo religioso. Esse deus pisa forte, coluna ereta, sisudo, cheio de tiques de poder, tem uma imagem séria a zelar e todos nós podemos suportar mais um pouquinho.

Ele predestinou um homem para cumprir uma missão no MEC: destruir todos os resquícios do legado de Paulo Freire e construir um projeto de educação sem ideologias e sem os palpites dos comitês científicos universitários.

Um deus severo que conspira para que deficientes físicos e deficientes intelectuais fossem mantidos em casa para não atrapalhar o processo de aprendizagem dos normais.

Através do seu ministro ungido, tal deus teria dito que a universidade deve ser para poucos e a escola apenas para os normais. Embora não acredite na teoria da evolução, tratando-se de relações sociais, o pastor revestido de autoridade aplica, ao seu modo, a seleção natural.

Esse deus sádico fez tudo isso em plena pandemia enquanto contávamos diariamente os mortos. Milton Ribeiro foi um crítico feroz, acusou e condenou as políticas de distanciamento social empreendidas pelos governos dos entes subnacionais. Por ele, a escola deveria ficar aberta e ser mostruário da tese de imunidade de rebanho. Aliás, com fervor defendeu a efetividade da cloroquina.

Fica parecendo que tudo isso era o cumprimento de um propósito divino em que as reuniões no MEC eram precedidas de momentos de oração.

Milton Ribeiro foi o Ministro da Educação entre julho de 2020 e março de 2022. Ou seja, no período mais grave da pandemia em que o MEC precisava responder rápido, ele estava a frente de um dos ministérios mais importantes. Foi preso hoje (22/06/2022) pela Polícia Federal sob acusações de prática de tráfico de influência e corrupção na liberação de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Pastores lobistas cobrando pedágio para o acesso ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE-MEC). As igrejas evangélicas formam um poder paralelo no governo Bolsonaro? Sabemos que não são todas as igrejas envolvidas, mas também sabemos que não são poucas as que estão deslumbradas com o poder.

O episódio com o ex-ministro Milton Ribeiro – tiro acidental na área de check-in do aeroporto de Brasília – foi o “gatilho” para evidenciar a agenda pró-armas de parcela significativa dos evangélicos. Mesmo os que não concordam com o movimento pró-armas liderado pelo governo, preferiram ficar no anonimato para não contrariar o chefe. Líderes evangélicos empenhados em legitimar a posse e o porte de armas fazem hermenêuticas bíblicas criativas, elásticas e caricatas. O comportamento ético desse grupo cristão armamentista é também uma faceta do que se convencionou chamar de agenda moral.

As igrejas evangélicas estão confundidas com o bolsonarismo. O episódio dos pastores lobistas não é um fato avulso. Existe um contexto amplo que em nada melhora a imagem da “igreja evangélica”. O momento é ideal para que os “isentos” se convençam que precisam dar um testemunho público. A fé que gera responsabilidades, ética. Caso contrário, fica parecendo que todos são “amigos do pastor Gilmar”.

É preciso assegurar o amplo direito ao contraditório, preservar a presunção da inocência, até seja provado o contrário. As investigações correm em segredo de justiça, razão pela qual não devemos nos precipitar e considerá-lo culpado. Sempre defendi uma justiça que funcione no tempo dos tribunais e não no tempo da mídia espetaculosa. O elogio da serenidade nos afasta da tendência de converter a justiça em vingança.

Contudo, necessário lembrar o processo de escolha por parte do Executivo Federal. O Presidente da República procurou um perfil inusitado. Além de notório saber nas questões referentes à educação, o escolhido para substituir Abraham Weintraub devia possuir uma notória ligação com o divino. Em melhores termos: um ministro terrivelmente evangélico identificado com um deus que não dança nem ri.

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Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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