O coronelismo eletrônico evangélico

Marcelo Adnet no filme 'Nas ondas da fé'. Foto: Divulgação

Sobreposição do regime representativo. Conluio do poder público com chefes locais. Troca de favores. Mandonismo nos municípios que vão além das instituições políticas formais.

Chefes políticos municipais que não ocupam necessariamente cargos públicos, mas sabidamente mandam no pedaço. Dispõe de poderes e mecanismos para acionar “votos de cabresto”. Será que essa caracterização da cultura política brasileira se restringe apenas a uma página infeliz da nossa história?

Coronelismo

Ainda que identificada a crescente criação de pequenas e médias propriedades rurais, prevalecia a estrutura baseada na concentração de grandes propriedades, latifúndios. O fenômeno do “coronelismo” não decorre apenas do mandonismo municipal, também deriva da estrutura econômica e social brasileira.

Embora o federalismo seja idealizado como a solução para a descentralização, coexistência do poder central e do poder local, no caso brasileiro retratado por Victor Nunes Leal, o federalismo se desenvolveu a despeito do municipalismo.

Os traços principais do coronelismo: atua no ambiente do governo local, predominantemente nos municípios rurais; promove o aparelhamento do Estado que consiste na retroalimentação do poder privado e do poder público; sistema político governista que conta com a força eleitoral dos chefes locais; facções locais governistas operam como condutores da máquina pública oficial.

Aferir que as causas e consequências do coronelismo ainda persistem rigidamente iguais seria incorrer em erro. No entanto, não podemos ignorar o fato que essa cultura política descrita por Victor Nunes Leal não é estranha, mesmo na atualidade. Possui traços que são perceptíveis no dia a dia da política nas disputas eleitorais. A ideia de coronelismo ganhou novas roupagens. Entre outras, as feições de um “coronelismo eletrônico”.

Coronelismo eletrônico

No passado, a centralidade dos proprietários rurais dando contornos ao mandonismo municipal. Na atualidade, os chefes políticos identificados como proprietários de mídias.

Os recursos de transformar aparatos técnicos de mídias em poder de influenciar votos e determinar estruturas eleitorais. Mando local, não necessariamente circunscrito ao município, em que o controle de mídias voltadas para grupos específicos coopera para gerar comportamentos políticos típicos.

Coronéis políticos transformados em coronéis eletrônicos. Mais do que uma transformação do conceito, trata-se de um novo arranjo diante das mudanças sociopolíticas. Tem mais a ver com continuidade do que com rompimentos ou rupturas.

Nas duas pontas do processo, persiste a imposição do controle. Enquanto os antigos coronéis mantinham o controle eleitoral a partir das suas propriedades rurais, os atuais coronéis eletrônicos despontam como liderança política a partir das suas propriedades de emissoras e retransmissoras de radiodifusão.

Suzy Santos e Sérgio Capparelli descrevem empiricamente como o poder público estabelece relações de trocas com setores empresariais que atuam na área das comunicações. São trocas de favores com compensações políticas que vão desde a sustentação política do governo até a propaganda política nos Estados e cidades em períodos eleitorais. Conluios que funcionam para além das regras eleitorais e dos princípios democráticos de equidade de condições perante o Estado para disputar votos e oferecer representação.

No Brasil atual, grupos familiares/empresarias dominam vastas redes de comunicação provenientes de concessões do Estado. Relações de troca que não fazem lembrar relações republicanas em que as decisões são publicizadas e justificadas. Conforme o coronelismo caracterizado por Victor Nunes Leal, o coronelismo eletrônico atual no Brasil funciona como uma sobreposição ao sistema democrático da representação política.

Os chefes locais, pelo grande poder político e econômico que possuem, são atores capazes de oferecer aos detentores do poder público a sustentação política que necessitam. Por outro lado, os chefes locais tornam-se os beneficiários preferenciais quando se trata de outorgas de concessões na área da radiodifusão.

Fica caracterizada a perpetuação de grupos de poder com alta capilaridade política. Os expedientes governamentais das comunicações são usados como “moeda de troca”. Na atualidade, os “coronéis” não são propriamente os grandes produtores rurais, mas os beneficiários/proprietários das empresas de comunicação de massa.

Coronelismo eletrônico evangélico

E quando os controladores das mídias dentro dessa lógica são grupos religiosos, especificamente evangélicos? Fica configurado o que conceituamos como coronelismo eletrônico evangélico. Grupos que dispõem do poder de comunicação midiática e que avançam na conquista, expansão, dos seus interesses religiosos, econômicos e políticos. Tais grupos podem ser igrejas que adquirem concessões do Estado de radiodifusão e resolvem diversificar suas atividades. Mas, pode ser também no sentido inverso: grupos de comunicação ou empresariais que diversificam seus investimentos e organizam instituições eclesiásticas.

Os vícios inerentes aos mecanismos de outorgas de radiodifusão operados por instituições estatais remetem à noção de clientelismo. A propósito, o clientelismo é um dos principais pilares do coronelismo. No período da redemocratização brasileira, após a ditadura militar, esses vícios de origem não recrudesceram. As concessões continuaram a ser usadas como moeda de troca, em que estruturas estatais continuaram a distribuir benefícios para os aliados. Tratando-se do ramo das comunicações, tal monopólio representava também tentativas de silenciamento dos opositores.

A cultura política brasileira é caracterizada tradicionalmente como oligárquica, clientelista e patrimonialista. O processo estatal de outorga de concessões de rádio e televisão durante a redemocratização não deixou de expressar essas características autoritárias do coronelismo.

A representação política evangélica passa decisivamente pelas instituições das redes de comunicação. Desde a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, o fenômeno do coronelismo eletrônico evangélico ocorre de forma contínua e crescente. Neste sentido, existe uma coesão pragmática entre diferentes grupos evangélicos que buscam, via consolidação de representações políticas, afirmação de redes de comunicação.

Estruturas são criadas e ampliadas caracterizando o coronelismo eletrônico evangélico como redes de comunicação que dispõem dos poderes simbólicos, econômicos e políticos. A expansão desses grupos ocorre em consonância e instrumentalização de setores estatais ávidos por reeditar o que Victor Nunes Leal chamou de mandonismo local. Determinados setores estatais utilizam recursos públicos para fidelizar lideranças locais que podem recompensar os favores com votos nas eleições e sustentação política popular no exercício do governo.

 

Referências bibliográficas

FIGUEREDO FILHO, Valdemar. Coronelismo eletrônico evangélico. Rio de Janeiro: Publit, 2010.

FIGUEREDO FILHO, Valdemar (2023). Representação política evangélica: Rádios FM´s nas capitais brasileiras. Projeto História: Revista Do Programa De Estudos Pós-Graduados De História, 76, 118–146. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-2767.2023v76p118-146. Acesso em: 03/06/2024

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1975.

SANTOS, Suzy; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira (org.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005. p. 77-101.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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