Em 1901, o Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa excomungou o Tolstói alegando que o famoso escritor, através da sua literatura, popularizava ensinamentos contrários a Cristo e à Igreja. Foi considerado herege por supostamente ser anticristão e anti-Igreja.
O motivo pelo qual exploro este tema na coluna da semana, recuperando o cenário gélido da Rússia na primeira década do século passado, tem a ver com o contexto religioso brasileiro atual. São muitas as possibilidades de conexões. Vamos ao conto e faça os seus próprios paralelos.
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Três monges russos viviam isolados numa ilhota em estado meditativo e contemplativo. O lugar não era frequentado, mas nos arredores existia a reverência pelo espaço tido como sagrado. Muitos construíam estórias sobre os três misteriosos habitantes da ilha. Pescadores alimentavam versões fantasiosas e cheias de mistérios.[1]
Curioso, o bispo pediu ao capitão para visitar a ilhota, mesmo sabendo que atrasaria a viagem. Em terra firme, na convivência de um dia inteiro, o bispo constatou que os eremitas em penitência tinham um conhecimento raso da Bíblia, sequer conheciam a Oração do Pai Nosso ou as sutilezas sobre a trindade.
– Como vocês rezam?
– Rezamos assim: Vós sois três, nós somos três, tende piedade de nós.
Na condição de autoridade espiritual, prestou-se a ensinar ao menos o Pai Nosso. Quando os homens iletrados pareciam ter finalmente decorado a oração, o bispo se deu por satisfeito, entrou no barco que o levou ao navio ancorado a sua espera.
Já no navio no mar aberto, foram surpreendidos. Os três eremitas andando sobre as águas seguiam a embarcação, para o assombro do bispo, do timoneiro e demais tripulantes. O vulto foi chegando mais perto. De fato, eram os três eremitas e não fantasmas, como suspeitaram a princípio:
– Servo de Deus, nós esquecemos! Esquecemos a oração que nos ensinou!
Vencida a perplexidade e o assombro, o bispo fez o sinal da cruz e enternecido os abençoou:
– Santos eremitas, a sua oração também chega a Deus e não sou eu que devo ensiná-los!
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Para Lev Tolstói (1828-1910), a espiritualidade prosaica não domada pelas instituições tinha o seu encanto. Quanto à religião com seus sacerdotes fardados com respostas prontas na ponta da língua sobre o mistério, devia ser suportada, porém, olhada de forma crítica.
Por que o Tolstói foi excomungado da Igreja Ortodoxa Russa? Acho que teve a ver com acreditar que onde existe amor, Deus aí está.
Tal ideia tão pueril tem o poder de implodir estruturas religiosas que reclamam pela guarda vigiada de Deus. O fiel pode se aproximar de Deus, na concepção das cúpulas hierárquicas, desde que supervisionado por uma autoridade eclesiástica.
Tolstói não perdeu a fé nem a sanidade. Continuou buscando a Deus a seu modo. Tinha uma relação de amor e ódio com a igreja. O que realmente o escritor e místico russo perdeu foi a paciência com a equipe de produção.
Deus é gente boa, mas a equipe de produção…
[1] Toltói, Leon. Onde existe amor, Deus aí está. Campinas, SP: Verus, 2001. p. 41-54.
Nouwen, Henri J. M. O caminho para o amanhecer: uma jornada espiritual. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 65, 66.
Foto: Iliá Répin/Museu Russo; Domínio público