Pai Nosso: Intimista

Havia nos dias de Jesus um esquema rentável em torno do templo. Vendedores disputavam espaço para oferecer víveres, cordeiro, novilhos, pombos e outras espécies que seriam oferecidas no altar. Bichinhos sacrificados para que o povo voltasse para casa de mãos vazias e alma lavada. Barraqueiros da fé oferecendo vida abundante através de sacrifícios de vidas.

Mesmo José e Maria, quando levaram o menino Jesus para ser apresentado no templo, levaram como oferta, conforme previa a Lei, um par de rolas ou dois pombinhos. Singelo se não fosse cruel. A consagração de uma criança no templo era ritualizada com o sangue dos bichinhos. Quanto mais rica fosse a família, mais caprichadas’ eram as oferendas.

O cheiro do incenso misturado ao cheiro das barracas que mantinham nas gaiolas os bichos. Açougue estilizado como corredor da morte. Carne fresca comprada não para o alimento, mas para o culto. Os barraqueiros da fé vivem escorados nos muros dos templos porque otimizam espaço e não precisam gastar com as estruturas de ferro e pedra.

Quem entrava no templo, não o fazia de mãos vazias. Entregava para o sacerdote do turno a devida oferta/sacrifício. Rituais oficiados pelo sacerdote que funcionava como mediador. Os religiosos entregavam a Deus o que o povo trazia. Inclusive, esses mediadores traduziam para Deus a oração dos crentes. A porta do templo estava aberta, mas quem se arriscaria a chegar perto do altar? Fumaça, grossas cortinas, castiçais, velas aromáticas, amplitude e profundidade diziam de um Deus que vivia na solidão na câmara escura.

A porta do mistério exigia códigos para entrar que só os mediadores conheciam. Os sacerdotes se vestiam apropriadamente e chegavam perto de Deus com mimos e orações do povo trêmulo.

Oração era para poucos. Oração era feita com hora marcada no lugar certo. Oração contava com a mediação dos sacerdotes que conheciam as exigências divinas e a desorientação das pessoas. Oração eram palavras ditas e afagos feitos através dos sacrifícios e ofertas.

Oração era uma atividade dispendiosa, difícil e cara.

Neste cenário em que barraqueiros da fé vendiam facilidades, Jesus ensina a orar assim: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta…”

Caramba, o mestre vai quebrar a banca, bagunçar a feira, inviabilizar o mercado, sacanear a coisa toda. Oração tinha lugar certo, hora certa e pessoa certa para mediar. Não pode ser fácil desse jeito. Pensavam os barraqueiros da fé.

O quarto como o recôndito mais íntimo. Oração de camisola ou de pijama. O quarto como lugar de despir-se. Oração nu. Sem a imponência da fala, muito menos as franjas das vestes de festa. Oração como informalidade que dispensa os ouvintes curiosos e os intermediários caros.

No quarto, ritualiza-se o cotidiano de uma forma absolutamente espontânea na nossa cultura. Os móveis não são dispostos de forma a impressionar eventuais visitas, no quarto, os móveis são funcionais, arrastados em função do nosso conforto. O quarto não é lugar de “fazer sala”, antes, lugar de “fazer amor”. Para muitos o lugar mais íntimo da casa.

Mergulhar voluntariamente na escuridão para experimentar a solidão. No quarto, o tão desejado silêncio é buscado. Existem orações que não queremos compartilhar nem com as pessoas mais íntimas e amadas. O papo não é comunitário. O corpo não precisa ficar em posição tensa para atender protocolos religiosos. A experiência tem mais a ver com sentir do que com falar.

Nas brumas da noite ou no calor do dia, deitados de olhos fechados ou olhando para o nada na janela, entre pensamentos vagos, confissões doídas, desejos febris, louvações cantaroladas, suspiros saudosos, ódio recalcado, queixas mal-ditas, lágrimas escorregadias, planos infantis, sonhos egoístas, mutilações violentas, gritos de dor, lembranças amenas…

Nessa intimidade confusa, surge a possibilidade de pronunciar o termo PAI.

Jesus nos disse que oração é intimidade, mas não sem muitas ambiguidades. Alguns, não suportando a amplitude do quarto e o silêncio das noites sem pompas e circunstâncias, preferem pagar para que os cambistas da fé lhes proporcionem a tão desejada mediação.

Quero viver uma espiritualidade sem as franjas das instituições religiosas. Quero tanto em noites aluaradas contemplar a sombra de Deus no meu travesseiro.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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